terça-feira, 23 de setembro de 2014

Livro publicado - PRIMEIRAS ESTAÇÕES

Olá pessoal,

Venho aqui, após um longo período de ausência, para dar uma notícia. Reuni, promovendo uma revisão textual, todos os contos publicados no blog. Todos os dez contos.

O resultado é o livro PRIMEIRAS ESTAÇÕES - CONTOS.

Para se tornar viável esta publicação, a mesma foi feita em uma editora virtual, a Bookess. A impressão de cada exemplar é sob demanda. Infelizmente isto tem um custo adicional. O valor é um pouco mais alto do que você encontraria em livros similares.

Assim, quem se interessar pode adquirir um exemplar diretamente no site da editora. São duas opções: a versão digital em pdf (R$ 11,86) e a versão impressa (R$ 39,74). Claro que indico a versão impressa pois existe a chance de eu poder autografá-la, e também o frete é grátis.

http://www.bookess.com/read/21082-livro-primeiras-estacoes-contos/

De qualquer forma, agradeço a todos!

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

As estações - 4ª parte


Inverno


            Caía uma chuva típica do mês de junho, nos trópicos. Eram quatro horas da tarde, mas já era noite no céu. Apesar do que o termômetro poderia indicar, o tempo estava mais quente, úmido. Não se sentia nenhuma brisa. Mas talvez fosse o aglomerado de pessoas, ou mesmo o trânsito intenso dos carros, que àquela hora, em plena sexta-feira, só pensava em ir pra casa curtir o final de semana com suas famílias.
            Eu caminhava entre a multidão, segurando meu guarda-chuva com vigor, pois a chuva caía impiedosa. Uma chuva vertical, de pingos-grossos. Não gostava de dias assim, dias de chuva. Nunca escondi de ninguém minha preferências pelas estações mais ensolaradas, como a primavera, o verão.
            Parei um pouco sob a proteção de uma marquise de lanchonete. Um pouco mais adiante ficava uma faculdade. Olhei para o interior do estabelecimento, estava lotado. Tornava-se refúgio de estudantes, de transeuntes, de pessoas como eu que só queriam se abrigar da chuva. O ambiente, todavia, instigara meu estômago a reclamar a falta de comida. Para sair mais cedo do trabalho, eliminei a etapa do almoço. Até minutos atrás eu não sentia nada, mas naquele momento, só em pensar em comida, só em lembrar que eu não havia almoçado, uma fraqueza tomou conta das minhas pernas, uma zonzeira passou pela cabeça. Já que estava ali, não custava parar uma meia hora para fazer um lanche. Fui ao balcão e pedi um salgado de queijo e um suco de laranja.
            Com a bandeja na mão, procurei um local para me sentar. Corri os olhos por todo o espaço, tudo ocupado. Pouco antes eu tinha visto uma mesa vazia. Agora nada. Andei ziguezagueando nos espaços estreitos, até que vi uma pessoa acenando para mim. Mas não, não podia ser, pois eu não conhecia ninguém por ali. Olhei à minha volta, mas nenhuma das pessoas tinha a atenção daquela menina. Ela riu e apontou o dedo na minha direção, indicando que era eu mesmo. Não tinha nada a perder, caminhei até ela.
            “Oi”, disse ela, toda sorridente. “Senta!”
            Obedeci, meio desconfiado. Não havia como não me encantar com aquele sorriso, com aquela beleza exuberante.
            “Era mesmo comigo que você estava falando?”
            “Oxe! Mas é claro que era com você. Ia ser com mais quem?”
            “Desculpe a indelicadeza, mas eu conheço você e não estou lembrando, é isso?”
            “Aff! Claro que não me conhece, nunca fomos apresentados.” E ela estendeu a mão dizendo seu nome. Retribuí dizendo-lhe o meu. E depois de uns poucos segundos, ela continuou. “Mas eu conheço você!”
            “Como?!”
            “Bem, conhecer de vista, de ver passar.” Não sei o que acontecia comigo, eu não conseguia tirar os olhos dela. Era meio repentino tudo aquilo, estranho até certo ponto. De fato eu fazia sempre aquele caminho para ir ao ponto de ônibus, todo dia. Mas saber que alguém me via, que se lembrava de minha fisionomia, era um pouco demais. Não pela singularidade do fato, muito pela completa incredulidade do mesmo. Era uma garota linda, talvez no começo ainda da faculdade, e eu tinha pelo menos uns bons anos de dianteira, e não era nenhum referência de beleza. Ela disse que me via passar há muito tempo, sempre apressado, sério, sem olhar para os lados. Fazia um curso de economia, porque queria um emprego no serviço público. Eu disse que já havia me formado há um bom tempo, que tinha feito mestrado, que estava começando a trabalhar numa grande empresa da minha área. E ficamos conversando, nos conhecendo.
            “Você é uma pessoa incrível”, eu disse em um determinado momento, aproveitando uma pausa que se abriu entre nós.
            “E incrível por quê? Sou absolutamente normal.”
            “Quem chamaria um completo entranho para se sentar à mesa consigo?”
            “Bem, isso lá é verdade. Mas eu chamaria sim, se esse estranho fosse você.” E ela riu mais um pouco, ajeitando seus cabelos castanhos, quase louros.
            E continuamos a rir e a conversar por um tempo indeterminado. Quando paramos, não por falta de assunto, foi porque ela olhou as horas e viu que era bem tarde.
            “Passamos mais de três horas aqui? Puxa, o tempo voa! Mas também, quando a conversa é boa, o tempo se torna tão irrelevante…”
            “Fico feliz por você dizer isso. Sempre me achei meio sem graça…”
            “Hum… Quer ouvir elogio é, moço?” E ela piscou o olho para mim. “Mas realmente preciso ir, estou na minha hora. Meus pais vão me torrar o juízo por esse atraso.”
            “E vamos nos ver outra vez?” Perguntei, enquanto nos levantávamos.
            “O que você acha?”
            Ela caminhou na minha frente, até a saída da lanchonete. A chuva havia passado. Observei-a por inteiro, finalmente. Beleza singular! Ao descer o batente, sua blusa levantou um pouco na parte das costas.
            “Você tem uma tatuagem?”
            Ela parou, virou-se para mim, sorriu e balançou a cabeça afirmativamente. “São flores”, ela sussurrou.
            E ela partiu, na direção oposta. Uma onda de felicidade tomou conta de mim. Algo me dizia que eu iria reencontrá-la muitas outras vezes.

*    *    *

            Como deixá-la ir? Era impossível não pedir que ficasse comigo o resto de nossa eternidade. Como implorar pela sua companhia, sem me mostrar frágil, dependente? Desde que eu chegara àquele lugar, as dúvidas iniciais, as inconstâncias do tempo… ela se tornara razão de meu ser. E ao vê-la banhar-se nas águas do mar, sorridente, sabia que meu destino e o dela estavam ligados de algum modo. Eu só me não lembrava se era pelo antes ou pelo depois. Ela devia ter feito parte de minha vida, ou iria fazer. Deitei-me sobre a areia, olhando o sol que ia alto. Fechei os olhos. E se eu tivesse que escolher? E se eu tivesse que optar entre estar morto e estar sonhando? Parecia não haver dúvida. Eu queria passar o resto de minha existência com ela.
            Acordei com pingos de água no meu rosto. Abri os olhos e ela me beijou. Um beijo terno, um beijo de amor.
            “Amor, está na hora…”
            Indaguei, curioso.
            “Na hora de quê?”
            “Está na hora de a gente acordar…”
            “Era um sonho então?”, perguntei, com o coração apertado.
            “Um sonho que a gente construiu juntos.”
            “Mas foi tão pouco tempo, temos tanto ainda pra viver… Não quero que você me deixe…”
            “Mas não sou eu que vou te deixar… é você!”
            Sentamo-nos lado a lado, como da primeira vez que conversamos.
            “Engraçado, sabe, a gente nunca sabe o que pode acontecer com a gente ao virar uma esquina, ou mesmo ao descer uma colina.”
            “Essa é a beleza da vida.”
            “Por que você esperou para falar comigo aqui? Um completo estranho…”
            “Você tem razão… eu não falaria com um completo estranho, a não ser que esse estranho fosse você…”
            De repente tudo ficou claro na minha mente, uma tempestade de lembranças me inundou por completo. Tudo se formava, se montava diante dos meus olhos. Ela não era uma estranha, nunca foi. Eu a conhecia! Eu a conheci muito anos atrás. Meu rosto se tornou lívido.
            “Vejo que você lembrou tudo. Que bom! Às vezes a gente precisa de coisas novas para enxergar aquilo que é antigo.”
            “Eu nunca deixei de amar você…” Eu disse, subitamente.
            “E você acha que eu deixei?”
            “Você mudou tanto…”
            “São as escolhas que fazemos que nos mudam. Mas quem sabe a vida não nos dá uma chance de voltarmos a ser o que éramos?”
            “E você acha que é possível?”
            “Tudo nesta vida é possível, basta a gente querer… Mas, agora está na hora…”
            “Então tudo não passou de um sonho?”
            “Você tem o poder de escolher…” E ela me beijou suavemente nos lábios. Seu perfume me inebriou. E o sol desapareceu diante dos meus olhos.

*    *    *

            Consegui abrir os olhos. Minha cabeça doía, como se uma espada a traspassasse. Lágrimas brotavam dos meus olhos, a respiração difícil, entrecortada. Virei-me de lado. Pude ainda contemplá-la dormindo, pela luz do luar. Sua tatuagem, de flores vermelhas, parecia ficar     ainda mais bela sob aquela iluminação tão especial. Uma nova pontada me fez dar outro grito e ela despertou assustada. Olhou-me com aquele jeito doce e meigo, mas ao perceber que eu não estava bem, ficou apavorada.
            “Meu amor, que aconteceu? Que você está sentindo? Vou ligar para a emergência!”
            Tentei, mas não consegui falar, a dor era insuportável.
            Ela começou a chorar e a me pedir perdão. Eu tentei sorrir, acariciei seus cabelos. Mesmo com a dor, eu pensei como a felicidade era algo utópico. Na vida lutamos dia a dia para se chegar até ela. Dias de alegria, dias de tristeza. Quanto vale a pena esse embate diário. Às vezes o corpo cansa, às vezes a própria vida cansa.
            Ela ficou junto de mim, segurando minha mão. Tentei falar.
            “Perdão…”
            “Perdão pelo quê? Não tem o que perdoar…”
            “Perdão por não ter feito você mais feliz…”
            “Bobo…” ela sorriu, com lágrimas nos olhos. “Você me fez a mulher mais feliz do mundo!”
            Acariciei seu rosto. Ela me beijou suavemente nos lábios. Era ela novamente, a mesma garota que um dia conheci numa lanchonete. A angústia que há muito eu vinha sentindo sumiu. Eu tinha meu grande amor de volta. Sorri. Seu perfume me inebriou. E a vida desapareceu diante dos meus olhos.

            Há estações e estações. A primavera e o verão podem representar o nascimento, a vida. O outono e o inverno, por sua vez, o fim de um ciclo. A vida é assim mesmo, vida e morte, num ciclo interminável. Um brigando com o outro, sem vencedores.

           

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

As estações - 3ª parte


Verão


            Abri e fechei os olhos várias vezes. O dia aos poucos foi sumindo de minha vista, uma escuridão tomando conta de meus olhos. Uma brisa fresca e úmida, um pouco salgada. Não conseguia mais enxergar o mar, pois o negrume que se formava me impedia de ver qualquer coisa. Mal conseguia enxergar a areia branca sob meus pés. Nem conseguia enxergar a garota que há pouco me inundara de expectativa e esperança de não estar sozinho ali. Sem ter muito o que fazer, sentei-me no chão.
            Dei por mim que era a primeira vez que havia noite naquele local, o qual eu estava bem tentado de chamar de limbo, ou até mesmo de paraíso. Estava certo que eu havia morrido e em breve seria julgado por todos os meus pecados, e espero que também por meus acertos.
            Tornei a fechar os olhos e o sono veio rápido. Imagino que dias acordado, mesmo que em outra “dimensão”, possam ainda trazer cansaço ao corpo. Esperava que o dia amanhecesse com respostas para as tantas perguntas que a cada minuto surgiam. Foi uma noite tranquila e silenciosa, apenas com a brisa náutica a refrescar os pensamentos. Não houve sonho. Mas pensei, e se eu não estivesse morto, apenas sonhando? Seria estranho lembrar de um sonho dentro de outro. Apenas um exemplo das tantas perguntas que se formavam. Mas, naqueles poucos segundos que eu ainda tive de lucidez, o principal questionamento era: ela estará aqui quando eu acordar?
            Mal eu fechei os olhos e adormeci, senti por trás das pálpebras um calor e luminosidade desconfortantes. Despertei com raios solares incidindo bem no meu rosto. Pus a mão na frente para que a cegueira passasse e minha vista se ajustasse ao novo dia que raiva. O sol brilhava pouco acima do mar calmo no horizonte. Não havia aves nem nuvens no céu, mas aquela paisagem era paradisíaca. O verdadeiro cartão-postal de um dia de verão.
            Levantei-me, sacodi a areia do corpo e principiei a caminhar. A faixa de terra era de se perder de vista. Atrás de mim estava a colina da qual eu descera no dia anterior. E se eu tornasse a subir, será que tudo que eu vira, tornaria a aparecer? Céus multicores, jardins, o vento frio? Bem, não queria voltar no tempo, assim, segui a adiante.
            Caminhei por quase meio dia, pela areia molhada, com pequenas ondas morrendo aos meus pés, cobrindo-os de espuma branca. O sol subia lentamente. Diferentemente da caminhada anterior, meus pés não se machucaram, as manchas de sangue foram lavadas pela água salgada e as feridas curadas. Era como se meu corpo se regenerasse. Continuei a andar, mas num compasso lento, aproveitando cada momento ali. Do meu lado esquerdo havia ainda uma extensão de terra que terminava num paredão que subia a se perder de vista. Alguns coqueiros altos completavam a paisagem, dando ares de decoração.
            O sol ia alto, acima de minha cabeça, o que presumi que pudesse já ser por volta do meio-dia, quando avistei, metros a minha frente, uma pessoa. Ao apressar o passo, e me aproximar dela, constatei que era a mesma garota do dia anterior. Ela estava sentada, olhando o mar. O sol iluminava seus cabelos cor de ouro, sua pele alva rutilava. Mas ao chegar mais perto, percebia que a moça não estava mais nua como ontem. Vestia o que imaginei ser um biquíni, mas feito de um tecido que lembrava palha. Parei diante dela. Ela desviou o olhar em minha direção. Tentei procurar palavras. Não podia falar qualquer besteira. Será que a minha insegurança em vida eu carreguei para a morte? O que dizer? Quando eu ia balbuciar qualquer coisa, ela falou:
            “Oi! Pensei que não iria falar comigo…”
            “Estava procurando as melhores palavras”, respondi, meio sem pensar.
            “E existem palavras certas? Por que todos sempre têm que achar que existem palavras certas? Ou mesmo selecionar o que dizer, ou o que não dizer.”
            “Talvez para não falar algo do qual possa se arrepender depois.”
            “Mas aí a pessoa está deixando a sinceridade de lado, arrumando uma personalidade que não é dela. Em algum momento isto vai ser deixado de lado e a pessoa acaba revelando o seu verdadeiro eu.”
            “É… você tem razão…”
            “Então, por que não ser verdadeiro no primeiro momento?”
            “Por que depois que você já conheceu a pessoa, ela pode relevar qualquer mal dito futuro.”
            Rimos os dois. Seu sorriso era encantador.
            “Você tem bons argumentos. Por que não se senta? Estou cansada de ficar olhando para cima.”
            Balancei a cabeça meio sem jeito e agachei-me, sentando ao seu lado. Pude ver a tatuagem de flores que subia pelas suas costas. Ela percebeu.
            “Gostou?”
            “Bastante!”, tinha que ser o mais sincero possível. Mas também, não haveria razão de não ser. “Achei linda desde a primeira vez que vi”, completei.
            Ela corou um pouco e abriu novamente seu sorriso largo. Virou-se um pouco para mostrar toda a extensão da imagem. Um desenho extremamente cuidadoso e bem elaborado.
            “Vi você ontem”, disse ela tornando a se aprumar. “Por que não falou comigo?”
            “Pensei que você fosse um delírio. Ainda tentei te alcançar, mas era como se meus pés estivessem presos, ou que o chão caminhasse a cada passo que eu dava, me afastando de você.”
            “É… talvez não fosse para nós conversarmos ontem…”
            “E digamos…”, parei, procurando encontrar as melhores palavras.
            “Lá vem você pensando no que vai falar. Por que não diz logo, sei que a pergunta já está aí.”
            “Você, hein! Bem… na verdade… ontem você estava mais à vontade… aproveitando essa praia deserta…”
            Ela riu, tornou a ficar com bochechas vermelhas, os olhos se fechando enquanto ria.
            “Quer dizer que você me viu nua, não é? Ficou espiando…”
            Fiquei sem jeito, sem saber o que falar. De repente eu me vi tentando me justificar, mas as palavras não conseguiam deixar minha boca. Fui eu a corar dessa vez. Ela veio em meu socorro, não se aguentando e deixando escapar uma gargalhada gostosa.
            “Mas é muito bobo! Brinquei com você… Por que todo homem se espanta com a nudez de uma mulher? Por que isso mexe tanto com vocês? Ou melhor dizendo, por que sempre têm que levar isso para o lado libidinoso?”
            “Acho que é de nossa natureza. Instinto talvez.”
            “Homens, homens, homens… Mas eu entendo vocês. E não critico! Não existe nada melhor do que um homem e uma mulher juntos, se é que você me entende”, e ela piscou o olho para mim, e continuou. “Mas, já respondendo uma possível próxima pergunta não formulada, mas pensada, sua: gosto de ficar assim sempre que posso. Aqui descobri ser o lugar ideal”, e ela fez uma pequena careta sorridente. “E aproveito pra responder também a sua próxima pergunta que você não teria coragem de fazer: por que não estou nua agora? Bem, porque você não daria a devida atenção a mim, ficaria preocupado em olhar, digamos, outras partes… E não estaríamos tendo uma conversa tão prazerosa e, fundamentalmente, sincera.”
            “Você sabia que nos encontraríamos? Você sabia que eu encontraria você?
            “Ora! Como não?! Se estamos apenas nós dois aqui. É meio óbvio, né?!”
            Mais uma vez não nos seguramos e rimos os dois, gargalhadas altas e francas. Ela falou sobre o tempo que estava ali, que não saberia dizer quanto, que de repente acordou e começou a caminhar. Não havia nada, absolutamente nada. Quase um infinito de desolação, disse.
            “Pelo menos eu acordei no meio de flores…”, comentei, interrompendo-a, mas logo me calando para que continuasse. Eu gostava de ouvir sua voz, suas argumentações eram impressionantes. Cheguei a comentar isso em outro momento em que ela fez uma pausa.
            “Não me lembro bem, mas acho que já me disseram isso. Não duvido que daqui a pouco você esteja me chamando de arrogante, ou mesmo pedante.”
            “Eu nunca diria isso…”
            “Talvez não agora, mas quando você não estiver mais tão encantado com a minha beleza. E nem adianta retrucar, sabe que eu tenho razão. Muitas pessoas deixam de falar aquilo que sentem com medo do receio do outro. Eu já lhe disse isso no começo dessa nossa conversar. Mas isso não se aplica apenas a situações de paqueras. Na vida a gente aprende a seguir a norma da boa convivência. Mentir o necessário para não magoar outras pessoas…”
            “E você é contra contar mentiras necessárias, então? Mesmo que seja com o intuito de não magoar terceiros?”
            “Pera aí…”, e ela riu, virando-se pra mim, deixando de olhar o mar. Ela quase sempre falava olhando o horizonte. “Também não sou nenhuma sem-noção. Eu digo que partilho da seguinte premissa: sempre que possível, seja sincero.”
            “Doa a quem doer…”
            “Então, aí depende, é a gente que julga isso.”
            Ela voltou a falar do tempo que estava ali. Do tempo que caminhou no meio de um deserto de areia, de sol escaldante. Seus pés sangraram, não passou frio, mas sim muito calor. A esperança de encontrar alguém é que a motivara a não desistir. Até que desceu uma colina e encontrou a praia, e os dias passaram a correr normais: amanhecer, entardecer, anoitecer. Talvez estivesse há mais de uma semana, perdera há muito a noção de tempo. E ficou feliz em me ter encontrado, mas ficou com receio de que eu pudesse trazer alguma notícia desabonadora.
            “Confesso que pensei que você fosse um tipo de guia, que confirmasse que eu havia morrido. Apesar de dizer sempre que estava preparada para isso.”
            “Eu pensei o mesmo de você, achei que teria respostas…”
            “Aqui o que mais fazemos é pensar, refletir. Acho que nunca filosofei antes na vida… Nossa vida é tão corrida que a gente esquece de parar e pensar em coisas abstratas.”
            “Ajudaria a limpar nossas mentes…”
            E continuamos a conversar enquanto o tempo passava. Vimos o sol caminhar, num céu sem nuvens, indo deitar-se atrás de nós. No horizonte, uma coloração avermelhada começava a se destacar. Aquele dia estava terminando quase do mesmo jeito que começou. Era um dia de verão, era mais um dia de verão. Uma brisa agradável soprava em nossas faces. As dúvidas que eu tinha, e que descobri serem as mesmas dúvidas daquela misteriosa mulher, praticamente tinham perdido a importância. A sua alegria sincera era contagiante em tamanha intensidade que tornava pequeno qualquer outro sentimento que não representasse um bom sentimento. E pela primeira vez, desde que eu despertara naquele mundo, não me preocupei com o dia seguinte. Sabia que a minha nova companheira continuaria a me fazer muito bem, independente do que o futuro poderia nos reservar.
            Estreitos raios de sol ainda nos iluminavam quando ela segurou a minha mão e se levantou, puxando-me. Obedeci, pois não via sentido em contrariá-la.
            “Vamos caminhar um pouco”, ela disse. “Ficamos tanto tempo sentado, que a perna ficou dormente.”
            “Você é quem manda. Contigo eu vou pra qualquer lugar…”
            Ela abriu novamente um sorriso iluminado pelo crepúsculo daquele paraíso. As ondas batiam em nossos pés. As espumas faziam cócegas.
            “Bobo!” E ela ficou séria de repente. “E se a gente realmente tiver morrido?” Ela fez uma pausa, eu dei de ombros. Ela continuou, puxando um sorriso um pouco mais discreto que o habitual: “Bem, se estivermos mortos, paciência. Não quero mesmo lembrar o que passou. Pode ser que minha vida não tenha valido tanto a pena.”
            “E se estivermos sonhando?” Indaguei, olhando fixamente para ela.
            “Se estivermos sonhando? Hum… que esse sonho dure um pouco mais então”

            Gargalhamos os dois e seguimos andando, ouvindo o marulhar das ondas do mar enquanto o sol se despedia de nós, num espetáculo de cores quentes e vivas. Uma brisa úmida e fresca corria pela praia, refrescando nossos corpos, amainando o calor e os nossos corações.

domingo, 3 de novembro de 2013

As Estações - 2ª parte


Outono


            Era outono. Não se viam flores castanhas espalhadas pelo chão, nas calçadas e ruas, como em tantas paisagens descritas nos livros, nos filmes. Simplesmente fazia menos calor, chovia um pouco mais.
            Caminhei lentamente ao final daquela tarde. Não queria voltar para casa. Não queria enfrentar minha vida por mais um dia que fosse. Não queria, mas tinha de enfrentar os problemas, pois eles não fugiam de mim. Entre a expectativa e frustração, a linha é muito tênue…
            Algumas gotas principiaram a cair. As nuvens não eram densas, não seria chuva forte, mas foi o suficiente para distrair meus pensamentos por uma fração de segundos. Um vento frio correu pela rua balançando a copa de algumas árvores mais adiante. Continuei a caminhada o mais lentamente possível, enquanto a camisa molhava cada vez mais. Ao parar diante do portão, respirei fundo, olhei o céu mais uma vez. As gotas caíam uma a uma, em câmera lenta, finas e inofensivas.
            Ouvi barulho na cozinha quando pus minha pasta sobre a cadeira. Ela percebeu que eu havia chegado e apareceu.
            “Chegou tarde”, ela disse. “Outra vez…”, complementou laconicamente, no que olhei pela janela e ainda podia contemplar o crepúsculo.
            Não respondi de imediato. Sentei no sofá, pegando o controle da televisão. Não queria outra discussão, outra disputa de argumentos sem sentido. Como eu queria morrer naquele momento, talvez me livrasse dos tormentos e infortúnios da vida. Não passava nada de interessante na TV e desliguei-a, para em seguida ir-me arrastando lentamente para o quarto, onde poderia tomar um banho e me desligar por alguns instantes do mundo. Meus pés doíam e quando tirei os sapatos, uma onda de alívio surgiu como um bálsamo restaurador. Tranquei-me no banheiro aproveitando para contemplar minha fisionomia cansada. Observei o exato momento em que meu olhos foram-se avermelhando, a angústia crescer no meu peito e lágrimas recorrentes brotarem. “Sou um fracasso!”
            O jantar estava servido e comi sozinho. Ela estava na sala, assistindo às novelas. Sentei-me na poltrona e permanecemos em silêncio por alguns minutos. No intervalo ela abaixou o volume, virou-se para mim e perguntou:
            “Conseguiu algo?”
            Era o prelúdio para uma nova discussão. Minhas opções eram continuar em silêncio ou responder e esperar as consequências. Optei pela segunda.
            “Não… não consegui nada.”
            “Se você se esforçasse um pouco mais…”
            Eu sabia que a conversa em tom baixo, polida, não duraria muito. Ela sabia que eu não aguentaria calado. Depois de alguns anos de convivência, saber os defeitos de cada um se mostrava mais importante do que as próprias qualidades. O problema é que ela sabia explorar os meus muito bem.
            “Não acredito que teremos outra vez a mesma discussão.”
            “Não deveríamos, não é?”, retrucou ela. “Mas estou cansada de sustentar você e não ver você se empenhando.”
            “Faz três semanas que eu saio todos os dias às seis da manhã, volto às seis da noite, passo o tempo todo andando, ouvindo desculpas esfarrapadas, muitas vezes sendo humilhado… Você acha que é fácil pra mim?”
            Ela respirou fundo e continuou.
            “Não digo que você não está procurando, mas acho que você não vai nos lugares certos. Quem está desempregado, não pode escolher… ou estou errada?”
            “Sinceramente? Você sabe muito bem que não é assim que a coisa funciona. Tantos anos de estudo… diploma… pra ficar aceitando qualquer coisa? Você se sujeitaria a isso por acaso?”
            “Meu emprego é estável, não depende do meu humor…”
            “Não me venha com essa, sabe que não fui demitido por incompetência minha.”
            “Mas brigou com o seu chefe, brigou com quem mandava e tinha poder sobre você!”
            “Não vou voltar a esse assunto. Acho que já esgotamos essa questão muito tempo atrás. Toda vez que começamos essa discussão, o assunto volta. Você sempre usa isso pra me menosprezar…”
            “Não seja hipócrita! Não se faça de inocente! Você é acomodado, preguiçoso!”
            “Chega! Já cansei disso!… cansei de você sempre me apontar os defeitos. Nunca neguei nenhum deles, mas sabe muito bem que eu mudei, que eu estava muito bem no trabalho, crescendo… Mas aquele filho da puta armou um esquema sujo! Não quis participar e ele ferrou comigo. Ou você queria que eu fosse desonesto?”
            Ela se calou por um tempo, procurando palavras. Meu coração batia forte no peito. Uma discussão sempre me abalava. Por mais que eu tentasse me conter, os ânimos se exaltavam. E também as palavras dela atingiam em cheio a minha alma. Me sentia um lixo…
            “Não ponha palavras na minha boca!”, retrucou ela. “É lógico que você não deveria ter se envolvido. Eu falo no geral, você sempre sonha, esquece da realidade às vezes… Esquece que tem família.”
            “Não seja injusta! Nunca faltou nada aqui, nunca! E quando você me conheceu, eu trabalhava, enquanto você terminava sua faculdade…”
            Ela calou-se. O roteiro era sempre o mesmo, cada discussão, cada argumento seguindo a ordem esperada, dia após dia. Ficaríamos longos minutos debatendo de quem era a culpa do meu fracasso. Difícil era quando a mentira começava a se tornar verdade. E cada vez que me era fechada uma porta, eu me questionava se ela não teria razão. Naquele momento eu ainda tinha forças de combater as agressões, mas temia que num futuro breve, eu já as aceitasse e assumisse como fato confirmado.
            Aos poucos os sons foram retornando e a realidade se refazendo diante de mim. Ela havia acabado de desligar a televisão e correr para o quarto. Pelo menos eu agora teria um pouco de tranquilidade. Levantei-me da poltrona, apaguei as luzes e deitei-me no sofá. Queria poder fechar os olhos e não acordar nunca mais. O relacionamento chegara definitivamente ao fim? Não era mais possível viver naquela situação, quando ambos se agrediam, ambos diziam coisas com o único intuito de agredir. Houve uma época de sonhos, em que apenas palavras de amor eram proferidas. É assim com cada casal. Lembrei-me dos amigos que me disseram para ter cuidado. “Ela não me parece confiável…”, disse-me um. “Ela é interesseira…”, disse-me outro. Também fiquei contra a minha família, com quem ela rompeu ligações há alguns anos. “Sinto muito por você, meu filho, mas é sua vida…”, disse-me minha mãe certa vez. Desde que perdi o emprego, ela mudara, tornou-se fria, amargurada. As primeiras frases de crítica logos se converteram em lições de moral, depois em cobranças. As brigas eram consequências inequívocas. A separação era iminente, pensei. Cansei de brigar.
            Era alta madrugada e o sono continuava distante de mim. De vez em quando eu levantava da cama, ia até a cozinha, tomava um copo d’água e olhava o céu cinzento. Eu não gostava muito do outono, era uma estação de indefinições. Quando o sono lhe falta, sobra filosofia barata. Sentei-me perto de uma janela e tentei ver o céu, mas apenas gotas desciam iluminadas pela luz oculta do luar. Senti uma pontada de dor na minha nuca, que depois caminhou em direção à minha têmpora esquerda. “Maldita enxaqueca”, pensei. Não havia nada melhor para piorar meu dia. Fiquei olhando para o lado de fora na esperança que as coisas mudassem, que de repente eu fechasse os olhos e tudo voltasse a ser como antes. Mas antes quando? Quando eu fui feliz verdadeiramente pela última vez?

            Coloquei o copo de água sobre a pia, caminhei a passos lentos em direção à cama. O coração palpitava forte, uma pequena tontura fez com que eu me apoiasse na parede do quarto. Todos os meus dias agora são de fortes emoções, ri comigo mesmo. Em determinados momentos, é importante que tenhamos senso de humor para rir de nossas maiores desgraças. Um dia as coisas mudam, um dia tudo acaba. Afastei o lençol, arrumei o travesseiro e me deitei. Ela dormia virada para o outro lado. Naquele momento ela não parecia tão assustadora, era uma sombra da garota que foi um dia. Acariciei seu rosto, seus cabelos cacheados. Por que ela não mantinha sempre aquelas feições plácidas, aquele semblante sereno. Dei um beijo suave em seu rosto e repousei olhando para o teto. Não mais chovia. Uma pequena onda de calor começava a se formar. Senti meu coração palpitar mais forte. A dor de cabeça aumentou assustadoramente. De repente me dei conta que algo de errado estava acontecendo comigo. Gritei e o mundo no instante seguinte ficou sem luz.


domingo, 20 de outubro de 2013

As Estações - 1ª parte



Primavera


            Eu fechei os olhos e entrei numa escuridão sem fim. Quase pude sentir o último sopro de ar deixar meus pulmões. Sem dor, sem mistério. Apenas um leve adormecer de pernas, braços. Um sono que me tomou completamente.

            A escuridão aos poucos se foi desfazendo e uma súbita claridade tomou conta de mim. Mal consegui abrir os olhos, ofuscado. Estaria morto ou tudo não passava de um sonho? Não me lembrava de como chegara até ali. Deitei-me cedo, com uma dor de cabeça fortíssima, após uma discussão violenta. E de repente, a dor sumiu e fez-se paz à minha volta. Um sentimento de alívio indescritível. Estava agora no meio de um campo de flores, imenso. Lírios amarelos, pressupus, perpassando minhas mãos sobre eles. Um campo vastíssimo. Caminhei entre as flores rumo ao desconhecido. Uma brisa fria chocava-se contra meu rosto, uma brisa diferente, cortante. Foi quando me dei conta de que vestia apenas uma calça surrada, e tinha o peito e braços nus. À medida que eu avançava, o vento frio tornava-se mais dilacerante.
            A paisagem não mudava. Não havia outra coisa no meu raio de visão que não as flores amarelas e um céu infinito em tons acobreados. Não havia nuvens. Não havia estrelas. Não parecia dia, ou noite. Onde eu estava? Morto, sonhando? Por que naquele momento os pensamentos eram tão obscuros, obtusos? Os meus pés descalços sentiam cada grão de areia, cada pequena pedra, a cada passada. Um filete de suor descia por minhas têmporas, contornando as bochechas, deslizando sobre o pescoço, indo misturar-se a todas as outras gotas de suor que brotavam de minhas costas e peito.
            Devia estar caminhando há aproximadamente duas horas, e a não alteração da paisagem me angustiava mais a cada passo. O que mudava era o sopro do vento, cada vez mais forte, cada vez mais frio. Onde estavam as minhas roupas, o meu agasalho. Quando olhei para o céu, percebi a mudança do marrom avermelhado para o branco, mas não eram as nuvens, apenas o céu que se tornava branco. Branco gelo, branco neve. Desci a vista para o terreno e as flores amarelas tornaram-se vermelhas, mas ainda eram lírios. De repente um uivo ecoou no espaço vazio à minha frente, mas não o uivo de um animal, e sim o uivo do vento, fazendo curvas, rodopios. As flores bailavam diante de mim. Metros adiante eu percebi finalmente uma mudança na paisagem. Principiei uma corrida alucinada. Os meus pés doíam, quiçá estivessem sangrando. Que importava, eu estava morto! Foi quando a areia virou rocha sob meus pés feridos e um precipício se materializou a poucos metros, fazendo com que eu brecasse assustado. O infinito estava diante dos meus olhos. Olhei para baixo, tiritando de frio, ofegante de cansaço, mas tomado de uma curiosidade a qual eu desconhecia possuir. Inclinei a cabeça na beirada e um zunido em meus ouvidos deixou-me tonto. O impulso de sentar-me foi imediato. Não havia nada adiante, o céu branco tornava-se argênteo e por fim um negrume se construía e preenchia o restante da visão. Os braços cruzados sobre meu peito eram uma tentativa inútil de proteção contra a friagem. E se eu me jogasse dali? Se estivesse dormindo, acordaria, se estivesse morto, nada mudaria. Mas parecia que minha falta de coragem em vida perpetuava na minha morte.

            Já fazia muitas horas que eu me via ali sentado, olhando o nada, sentindo um completo vazio de pensamentos e emoções. As lembranças chegavam em lufadas, cortantes, como a aura fria que soprava, vezes forte, vezes fraca, e que parecia ser a única coisa imutável naquele lugar. Lágrimas vez e outra brotavam e secavam antes mesmo de deixarem os olhos. Olhei o sangue seco e preto na planta dos meus pés. Seria ali o purgatório, o local para se avaliar os erros e acertos em vida? Será que minha descrença em algo maior me fez cair numa zona morta, sem companhia. E tanto medo eu tive da solidão que agora eu passaria sozinho a eternidade? O céu não estava mais acobreado, ou branco, ou negro. Lâminas alaranjadas, tons vermelhos, pinceladas púrpuras mudavam o aspecto. Era bonito de se ver. Olhei os lírios atrás de mim e as flores mudavam de cores também, como se fossem um reflexo, ou melhor, a cor complementar do que estava acima delas.

            Não anoitecia, não amanhecia. Mas ao meu contar do que seria o terceiro dia, surgiu uma borboleta solitária sobrevoando o campo de flores. Tinha as asas pretas, brancas e laranjas, em desenhos psicodélicos. Ela voou em minha direção e me ficou fazendo voltas até pousar na beirada do precipício. Tive vontade de falar com ela, dizer “oi”. Talvez eu estivesse ficando louco. Ela ficou parada um tempo e depois voou, sumindo nas trevas daquele buraco sem fim. Senti minha alma sombria enquanto pensamentos soturnos perpassavam dentro de mim. Talvez ali fosse um local para reflexão. Tantos sempre quiseram saber o que havia depois da morte. Anjos, demônios, almas vagando solitárias, espíritos de luz, talvez Deus. Eu nunca acreditei em nada. Do pó viemos, ao pó voltaremos. Fato! E agora estou eu tendo o privilégio de descobrir a tão pesquisada vida após a morte. Engraçada é a ironia por trás dos feitos. E se eu não estivesse morto, apenas preso a um sonho sem fim, em coma, sobre a cama num leito de hospital, com minha esposa e meus filhos chorando por mim. Aquele pensamento me deixou ainda mais deprimido e a vontade de atirar-me do infinito negro ganhava força. Queria poder chorar agora, mas as lágrimas há muito haviam secado. Pobre alma a minha, pobre do meu espírito descrente.
            Enquanto as horas passavam incólumes, eu refletia, atento às mudanças de cores, do céu, das flores. De repente uma música despertou-me de meu transe. Uma melodia lenta, cativante. Virei-me na direção de onde vinham as notas e dirigi-me até elas. Uma estrada abriu-se diante de meus olhos, um caminho para baixo, deixando as flores para trás. Uma muralha começou a se erguer entre a pequena estrada, rochas cristalinas, lâminas perfeitas, eu na verdade me precipitava para baixo, de encontro ao escuro que há pouco contemplava do alto, para o mal… ou para o bem. Mas não estava escuro, pelo contrário, a cada passo que eu dava, o mundo se transformava. O céu tornara-se azul e algo que lembrava o sol materializava-se aos poucos. O frio constante, ao qual eu já me havia acostumado, transformou-se em calor. Quilômetros depois a estradinha findou e o chão de pedras virou um chão de areia brancas. A música nem aumentava, tampouco diminuía. Era conhecida, trouxe-me lembranças. Notas harmoniosas, singelas, agradáveis. Enquanto caminhava tentei organizar aquelas memórias perdidas. Senti o chão mudar outra vez, areia mais fina sob meus pés. Aos poucos a música foi sendo oprimida pelo marulhar das ondas. E quando me dei conta, estava numa praia, as ondas quebrando formando uma espuma branca que se espalhava por toda a extensão visível. O sol surgiu forte, ofuscante e o mar alcançou meus pés. Senti a água gélida da manhã. Seria manhã? O sol nascia no horizonte. Continuei caminhando, sentindo a areia úmida sob meus pés e de quando em quando era alcançado por uma onda mais arredia que se alongava na areia. Não escutava mais a música que por horas ficara em meus ouvidos, agora apenas as ondas que se chocavam e morriam na praia.

            Não fazia ideia do tempo que estava caminhando, o cenário não mudava. Mas agora o mundo parecia o mundo que eu conhecia. Não havia mais um céu multicor, e o sol arqueava como esperado e programado pela natureza. Haveria noite finalmente? Pois o sol começava a se posicionar de meu lado esquerdo, enquanto eu caminhava para o que imaginava ser o norte. A claridade do poente me encadeava e eu mal enxergava metros à minha frente. Subitamente, um vulto se fez um pouco mais adiante de mim. Era uma mulher, pela silhueta enegrecida pela sombra do crepúsculo. Apressei o passo até ela. Eu não estava sozinho naquele lugar! Se eu estava morto, seria ela um anjo a me guiar? Os cabelos esvoaçavam pela força do vento. Sua silhueta foi tornando-se mais clara. Ela olhava o mar. Estando já bem próximo percebi que estava nua. Parei instantaneamente, de certo modo chocado, ou atordoado, com aquela imagem. Ela era linda. Tentei falar com ela, mas ela principiou a andar. Caminhei mais rapidamente, e ainda assim não consegui alcançá-la. Contemplei suas curvas generosas. E quando ela atravessava alguma faixa iluminada, percebi que era alva como as espumas das ondas que quebravam na praia e tinha um balançado no jeito de andar enlouquecedor. Seus cabelos bailavam ao vento, cabelos dourados. Havia uma tatuagem, uma flor que brotava de suas nádegas perfeitas e rosadas. Brotava um ramo e dele surgiam flores vermelhas que findavam no meio de suas costas. Nunca vira algo mais belo. E ela era assustadoramente bela.