sábado, 10 de setembro de 2011

Há dez anos... - parte final

            Era início de junho e o tempo esfriara além, e antes, do que eu esperava. Uma frente fria típica da época, diziam os moradores. Haveria no final de semana seguinte uma festa na cidade, uma grande festa em comemoração ao santo padroeiro. Todos estariam lá. Toda a cidade se mobilizava para isso. Desde o início eu havia decidido não ir, não era muito dado a festas, mas quando soube que a Leca estaria lá, mudei de ideia. Evidentemente que a programação e todas as conversas entre alunos, professores e funcionários, era acerca desse evento que tomava proporções espetaculares. Quando, na sexta-feira, comentei com os alunos que iria, alguns garotos perguntaram se eu dançava, pois o que não faltaria era música e mulher para um bom bate-coxa. Não consegui controlar o riso e me permiti um momento de distração com todos ali, junto com todos ali. Era já no final da aula, e não havia mais clima, no bom sentido, para continuar. Leca sempre era das últimas a sair, demorava arrumando o material. Eu me aproveitava disso para contemplá-la à distância, sorvendo cada minuto da sua beleza. Quando ficamos a sós, brinquei dizendo que gostaria de dançar com ela. Não sei de onde brotou tamanha ousadia de minha parte, mas a frase já havia deixado minha boca, não podia ser feito mais nada. Ela corou e disse que não costumava dançar, mas que comigo dançaria, seria um prazer. Decerto que não desconfiou, mas naquele instante, quando ela terminou de pronunciar aquelas poucas palavras, que tinham o som da melodia mais pura e harmoniosa, quase desmaiei de felicidade. Ela saiu em seguida, sem olhar para trás, sem perceber a semente da esperança que fora lançada. A partir daquele momento era só esperar o dia seguinte. O problema seria segurar a ansiedade nas pouco mais de vinte e quatro horas que faltavam.
            E chegou o sábado.
            A festa realmente era um acontecimento. Havia de tudo lá, barracas de comidas e bebidas, e a proximidade dos festejos juninos atraiu bandeirolas, fogueiras, fogos, pessoas vestidas a caráter e pessoas de todos os tipos. Fiquei surpreendido com tamanha animação. Mas a noite ganhou brilho e graça quando vi os cabelos castanhos, a pele clara, a boca rosada e toda a graça de Helena Carla. Estava produzida, usando um vestido verde oliva, que deixava metade das belas pernas à vista. O fôlego abandonou-me por completo, deixando um sopro de vida apenas para que meu coração não parasse de bater. Quando me viu, abriu um sorriso. E como eu gostaria de poder dizer – o meu sorriso. E como era lindo e gracioso! Aproximei-me dela, trêmulo, nervoso, como um garoto de doze anos.
            – Vai dançar comigo, não? – arrisquei.
            Ela respondeu com um sim tímido, baixando a cabeça. Mas reiterou que não sabia dançar muito bem. Ah, como estava bela! E quem se importa com o saber dançar, quase eu disse. E não mais vi o tempo passar. Afastei-me um pouco, esperando o momento, a música certa. Não queria sufoca-la, não queria que nada saísse errado. Definitivamente para mim o tempo não mais existia. Tudo ficava parado quando Leca estava por perto, e eu não a perdia de vista. As conversas com outras pessoas, professores que também estavam ali, não me interessavam, nada importava. Eu respondia como um robô programado, apenas esperando o momento de ir ter com minha amada. Ela era dona absoluta do universo, rainha de tudo que estivesse ao seu redor. Então eu vaguei por entre as pessoas, esperando o momento, a hora determinada, com meu coração aos pulos de ansiedade, aos pulos de felicidade. E então o momento chegou, quando uma música mais suave começou a ser tocada. Caminhei até ela, ignorando todos ao meu redor. Danem-se as convenções! Eu a chamei. Nós dançamos! Senti sua respiração próxima, seus cabelos tocando meu rosto, sua voz sussurrando coisas indecifráveis para mim. Naquele momento, eu tive, pela primeira vez em minha vida, a plena noção da felicidade. É uma súbita consciência das coisas ao redor. Como, diante daquele sentimento, todo o resto ficava tão pequeno, tão diminuto. Foram apenas algumas músicas, poucos minutos, mas foram minutos que guardaria para sempre no fundo da minha alma, como um dos melhores momentos da minha curta vida. Na última música, eu encostei minha face em sua face, senti o calor de sua pele. Nossos lábios se encontraram, e numa fração de segundos, pude sentir o seu hálito doce, pude sentir o seu beijo. Mas não passou mesmo de uma fração de segundos, pois a música acabou, e ela se afastou de mim. Não disse nada, apenas me olhou nos olhos. Pela primeira vez senti um olhar doído, que não pude decifrá-lo, e seria incorreto descrevê-lo.
            A noite terminou e no momento que eu ia embora, acenei para ela. Era um adeus que foi retribuído com mais um generoso sorriso. Só que algo havia mudado. Foi a primeira vez que dançamos, entretanto eu tinha a certeza de que seria a última também. E toda a felicidade que eu sentira naquela noite, foi-se aos poucos transformando em melancolia. A semente da esperança germinou, brotou, mas mingou num beijo roubado não correspondido. E na volta para casa, em companhia de um céu estrelado de lua crescente, a dor começou a crescer em meu peito.
            As semanas seguiram-se da mesma forma: pequenas e rápidas conversas, algumas trocas de olhares e sorrisos furtivos. Mas não como antes. Percebi que ela não mais era a última a deixar a sala, não ficava mais sozinha comigo. E a cada dia que passava, ao contrário do que eu queria, sentia o meu amor crescendo, minha admiração por aquela menina, aquela mulher, aumentando. Estava certo que ela nunca me enxergaria. Nunca me enxergara a bem da verdade, tudo nunca passara de uma bela amizade da aluna pelo professor. E eu desejava cada momento vê-la, ouvi-la, saber coisas sobre sua vida, seus desejos e anseios. Isso não mais era possível. Sonhos que como um castelo da areia foram-se desfazendo dia após dia. E as últimas aulas tornaram-se dolorosas, angustiantes. A imagem de sua beleza sempre me perseguiria e não sairia nunca mais dos meus pensamentos. Sua pele alva, seu rosto bem contornado, sua boca rosada, seus olhos inocentes. Ela definitivamente era um anjo, talvez ainda não soubesse, mas era sim, eu sabia que era. Pelo menos para mim, o mais belo anjo que Deus já colocou na Terra.

            Meu irmão levantou-se do sofá e bateu forte sobre ele com a mão. Grunhiu algo indecifrável, um resmungo de total reprovação. Depois se virou para mim:
            – E por que você não falou nada para ela?! Não te entendo… Ora, tem coisas no mundo que você deve atirar para cima e seguir o coração. Neste mundo a gente tem que ser feliz!
            – Mas eu te disse que ela tinha namorado! E ela nunca me enxergaria além de um amigo, talvez até um bom amigo! Nada mais do que isso!
            Eu gritava mais forte a cada frase. Meu rosto ficou inchado e vermelho. Ele também, e era como seu estivesse me vendo. Eu bufava e ele também.
            – Dane-se o namorado dela! Ela disse a você que tinha um, por acaso? – retruquei com a cabeça, ela nunca havia me dito. Mas ela rejeitou o meu beijo… Ele prosseguiu. – Você deveria ter se arriscado mais! Agora, dez anos depois, está arrependido? Qual o problema de levar um fora? Porra! Era o máximo que poderia acontecer, e provavelmente era o que iria acontecer. Um beijo de leve… que bobagem! Bobagem romântica!
            – Você não entende, não é? Ninguém entende… eu mesmo não me entendo. Mas uma coisa eu sei: eu a amava mais que tudo. E só a ideia que ela pudesse desconfiar do que eu sentia me atemorizava.
            – E por quê? Pelo que conheço de você, nesses quarenta anos, você nunca primou pela discrição. Seu rosto e suas atitudes o denunciavam sempre. Você realmente acha que ela não sabia desde o primeiro momento? Faça-me o favor!
            – Não sei… não sei… Mas se ela viesse a saber de algo, ela mudaria comigo. Como mudou! E eu não suportaria vê-la indiferente, vê-la se esquivar de mim, fugir, não querer falar comigo mais. Como de certa forma aconteceu. Mas uma coisa é certa: eu não suportaria ouvir de sua boca que eu era apenas um bom amigo, como tantas vezes eu já ouvi em minha vida. O medo de não poder mais olhar os seus olhos, ou ver o seu sorriso, para mim era pior que a morte. E além do mais, eu queria vê-la feliz. Para mim isso era o que importava, e importa até hoje. Vê-la feliz… E eu faria de tudo para sempre poder ver um sorriso entre seus lábios. Não brincava quando dizia que ela era um anjo. Ela foi feita para estar sempre sorrindo, sempre feliz. Se você a tivesse conhecido… Se eu pudesse, daria minha vida a ela. A minha vida… É por isso que o meu amor já nascera impossível, porque eu já havia ganhado muito da vida, eu a conheci. Não ousaria, em momento algum, pedir algo tão descabido. Ela podia ou não ter um namorado, mas tinha os amigos, todos da mesma idade. Ela estava feliz, ela era feliz. Talvez um dia, quem sabe, ela saiba que um homem a amou tanto quanto ela merecia.
            – Quanta idiotice! – balbuciou ele, olhando para mim, com aquele olhar de reprovação de sempre. – Nunca ouvi tanta besteira nesse mundo! Você procura se agarrar a justificativas românticas para esconder sua fraqueza, sua covardia! E fica se lamuriando há dez anos por isso, culpando-se por uma infelicidade que você causou. Você me envergonha. Você nunca poderia tê-la deixado…
            – Eu não a deixei! – gritei. Olhos cerrados, punhos que socavam o sofá. – Você sabe muito bem o que aconteceu! Não quis abandonar tudo. Não quis deixá-la… Eu tive que fazer isso… e isso me doeu mais que sua própria morte, meu irmão.
            Baixei a cabeça e chorei copiosamente. Pela primeira vez eu pensara na minha vida, na minha eterna solidão. Lembrei-me de Leca, da sua testa franzida quando não estava entendendo o assunto, e do sorriso quando conversava com uma das amigas. Lembrei-me da sua voz doce e suave, do seu jeito tímido e inocente. Ela era perfeita, sempre será perfeita!
            Ainda soluçando levantei os olhos na direção do meu irmão, que não falava mais. Encontrei a sala vazia, não havia ninguém. Não havia meu irmão, não havia ninguém. Há dez anos que eu não o via, desde que se acidentara e morrera. E eu tive que voltar para a casa dos meus pais, para cuidar deles. Sobre a mesa apenas uma garrafa vazia de vinho e uma taça. Eu estava só, como sempre eu estava só. Tudo não passara de delírios, traquinagens do meu inconsciente. Ri comigo mesmo. Levantei-me, abri a porta que dava para a varanda e uma lufada de vento frio inundou a sala. Saí, dei alguns passos, respirando forte o ar marítimo. A lua estava cheia e brilhava muito. 



quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Há dez anos... - parte 2

            Há dez anos eu lecionava literatura estrangeira e ministrava aulas de composição em uma universidade. Recém-concursado, longe de minha terra natal. Tudo era novo para mim, eu detestava mudanças. Mas era novo para muita gente também, e desafios geralmente ajudam a fazer uma pessoa crescer. E a paisagem daquela região favorecia uma adaptação menos conturbada. Montanhas e vales, um verde que se avistava de longe, de qualquer ponto da cidade, um tapete produzido pela natureza. Poder-se-ia perder horas e horas contemplando o horizonte, apenas escutando o nada, muitas vezes o silêncio absoluto. E a brisa marítima, mesmo estando o mar a alguns quilômetros de distância, podia ser sentida. Nos finais de semana então, era impraticável não pensar em ir à praia. Enfim, um paraíso! E minha saudade assim era amainada.
            A gente espera tudo na vida, mas conhecer o grande o amor da sua vida numa sala de aula não está entre as principais. Quando entrei e vi aquela turma, cheia de olhares curiosos, rapazes e garotas de dezoito e dezenove anos, não me senti velho, como achei que me sentiria. Afinal eu tinha apenas trinta anos. Era a minha primeira turma, eu nunca havia ensinado antes. Após regressar do estrangeiro, com um doutorado em literatura, ser professor acabou por se tornar uma forma de transmitir o conhecimento adquirido, mas, principalmente, de me sustentar. Ainda não havia publicado nada, e esse era o meu maior desejo, minha grande vocação. Com relação aos alunos, certamente eu tinha mais medo que eles. Todos os que já passaram por essa situação diziam que eu nunca poderia demonstrar este temor. Apresentei-me e apresentei o programa da disciplina. E assim o tempo foi passando. Foi quando, quase no fim da aula, os meus olhos encontraram a garota mais bela que um dia puderam enxergar. Ela estava no fim da sala, prestando atenção ao que eu dizia, como se fossem as palavras, frases mais importantes do mundo. Fitei-a como se mais nada existisse ou importasse. Talvez aquele momento não tivesse levado um segundo sequer, mas para mim foi a eternidade, pois não consegui mais tirá-la do meu pensamento nos poucos minutos que restavam da aula. O coração acelerado, o tremor nas mãos, o suor frio, sentimentos que há muito eu não sentia, mas que imediatamente pude identificá-los e justificá-los. E quando enfim, acabou a aula, ela foi embora rapidamente com as amigas, e mal pude vê-la. Ainda assim, havia guardado na memória aquele olhar sério, sobrancelhas arqueadas, a pele alva, o cabelo escorrido, de um castanho que casava perfeitamente com seu rosto angelical. Naquele dia eu pude afirmar que a perfeição existia e se encontrava nas minhas aulas de literatura estrangeira.
            De repente, eu ansiava por aqueles momentos, com aquela turma, dia após dia, semana após semana. Já sabia seu nome… Leca… Na verdade, Helena Carla, mas todos a chamavam de Leca. No primeiro momento pensei ser o diminutivo de “moleca”, mas não combinava com o seu jeito de ser, pelo menos não o que eu idealizara para ela. Vez ou outra, nós nos cruzávamos nos corredores, e eu me atrevia a olhá-la e sorrir ligeiramente. Ela sempre sorria de forma educada e um brilho maior que o sol ofuscava tudo ao redor e só ela passava a existir.
            Percebi que era muito tímida, mal ouvia sua voz durante a aula, mesmo quando alguma discussão se acalorava. Eu queria tanto ouvi-la, queria tanto conversar com ela, mas como? Como encontrar o momento ideal? Durante semanas, eu me torturava pensando em um modo de falar, trocar ao menos duas palavras. Não que seus olhares e sorrisos para mim já não fossem suficientes quando a encontrava nos corredores, mas no íntimo sabia que ela apenas estava sendo simpática.
            Pouco depois de dois meses, eu a vi, sentada numa mesa mais afastada da cantina, na parte externa, à sombra de uma mangueira, lendo. Havia muitas árvores no campus e um bom número de alunos passavam as tardes gazeando aulas em conversas, descansos e leituras. Aproximei-me, passo a passo, tentando descobrir o que lia tão avidamente. Como não consegui identificar, venci meu medo e sentei-me ao seu lado. O momento fez-se naturalmente.
            – Oi! – disse, de forma súbita e um tanto atabalhoada.
            Ela levantou os olhos, surpresa. Ah! Se ela soubesse como ficava linda concentrada! Queria ter coragem e dizer isso a ela. Minhas mãos gelaram.
            – Oi! – ela respondeu sorrindo para mim. Definitivamente, era o sorriso mais lindo que meus olhos tiveram o privilégio de conhecer, e a voz parecia uma melodia de pássaros do campo. (Os românticos são incorrigíveis!)
            – Estou te atrapalhando? – perguntei, tentando disfarçar meu nervosismo.
            – Não! Claro que não! – continuava sorrindo, e eu mal conseguia parar de admirar sua beleza, tão intensa, ao mesmo tempo tão simples. Talvez fosse seu semblante angelical.
            – Eu vi que você estava lendo… fiquei curioso!
            – Ai meu Deus! – exclamou corando. – O senhor vai reclamar, aposto. Não é o tipo de literatura que deve aprovar.
            – Vou reclamar sim… por me chamar de “senhor” – dei um sorriso meio nervoso. – Não sou tão velho assim – e emendei logo, constrangido e arrependido pelo que acabara de dizer. – Mas não tenho problemas com nenhum tipo de literatura. O importante é gostar de ler.
            – Ah, eu amo ler! – e ela me mostrou a capa do livro. – Agatha Christie! Sou fã!
            – Puxa vida… não acredito nisso…
            – Tá vendo, não falei, vai reclamar… eu adoro histórias policiais, de suspense.
            – Eu?! Eu adoro também! Li todos os romances dela. E porque eu reclamaria? É uma ótima literatura. E se você gosta mesmo dos policiais, devia experimentar também ler Poe.
            – Hum... li um conto uma vez. Vamos estudá-lo?
            – Não, não este semestre. Por enquanto ficaremos nos americanos contemporâneos. Vamos começar a ver a obra de Fitzgerald na próxima aula. Com o Grande Gatsby.
            – Eu vi o filme! – disparou.
            E gargalhou, surpresa com a sua reação, fora quase um grito. Meu Deus, como ela era adorável! E ficamos conversando ali por mais alguns minutos, sobre obras diversas, presente, passado e futuro. Nunca pensei que fosse me sentir tão bem.
            Foi nossa primeira conversa. Infelizmente, não foi a primeira de muitas. Mas eu festejava cada pouco momento que ficava ao lado dela, apesar de sempre estar com as amigas. Nas semanas seguintes a minha motivação mudara: vê-la, por mais breve que fosse, me fazia o peito encher de alegria, e todo o resto do meu dia tornava-se mais leve.  Sentia-me outra vez adolescente, outra vez vivendo um grande amor. E sempre que podia, mudava o meu caminho para passar pela sala de Leca, na esperança de vê-la. Algumas vezes eu a via concentrada nos estudos, em outras conversando com as amigas. Já nas minhas aulas, eu lutava ardorosamente para não a olhar, pois decerto meu pensamento voaria longe, ao mesmo tempo em que eu continuaria ali inerte, preso ao seu olhar, com cara de bobo. Às vezes, quando era inevitável e nossos olhares se cruzavam, eu largava um pequeno, quase imperceptível, sorriso, o que ela retribua delicadamente, na mesma proporção. E nesses momentos meu coração acelerava, meu sangue pululava em minhas veias.
            E assim se passavam as horas, os dias, as semanas. O tempo voava e a cada dia o seu encanto para mim se tornava ainda maior…

            Meu irmão levantou-se, deu uma volta inteira em torno do sofá; aproveitou e fechou a porta da sala que dava para a varanda, começava a ventar e o tempo esfriara rapidamente.
            – Meu Deus, cara! Ela era sua aluna! Não dizem que isso é errado?
            – Errado?
            – Sim… Antiético, coisa desse tipo? Sempre escutei coisas desse tipo.
            – Bem, se era errado ou não, eu não sei, não posso dizer. Mas o que poderia haver de errado? Admirar uma garota? Achá-la a mulher mais linda do mundo? Se isso é antiético, não sei, não acho…
            – De qualquer forma, você não estava apenas a admirando, você estava apaixonado por ela.
            – Não! Apaixonado não… Paixão seria algo passageiro, algo momentâneo. E a paixão por diversas vezes é egoísta. Eu a queria feliz. Queria ver seu sorriso a qualquer custo. Para mim, vê-la era o suficiente.
            – Você a amava! – exclamou subitamente, deixando-se cair no sofá. – Deus do céu! Você a amava! Juro que sempre achei que você nunca havia amado ninguém. Suas histórias são sempre tão… tão soturnas… tão carregadas de amargura…
            Minhas pernas tremeram por um tempo, mas permaneci em silêncio, cabeça baixa.
            – E por que então você não falou com ela? Ora, se você a amava… Danem-se as convenções!
            – Não podia! Nunca!
            – E por quê? Por um acaso ela tinha alguém?
            Suspirei lentamente. De repente uma nuvem pousou demoradamente sobre minha cabeça.
            – E você acha que a garota mais linda que eu já conheci, que tem o sorriso e o jeito de ser mais adorável deste mundo, estaria sozinha? Claro que tinha! E pelo visto era apaixonada por ele.

sábado, 3 de setembro de 2011

Há dez anos... - parte 1

Bem... o título não faz referências a memórias minhas, muito menos ao que aconteceu há dez anos. Trata-se de um conto. Dessa vez, mais água com açúcar (chega de assassinatos e psicopatas por um tempo). Espero que gostem!



Há dez anos…


            Eu caminhava lentamente observando o sol que se punha no horizonte... Os meus pensamentos voavam por entre as nuvens do largo céu que se escurecia tingido de um vermelho enegrecido e forte à medida que a grande bola de fogo tocava o oceano. Não entendia a razão daquela melancolia em plena tarde de outono. Meus pés sentiam a água que batia neles suavemente fazendo espuma e uma sensação prazerosa amainava o vazio que subitamente eu começava a sentir.
            Estava caminhando fazia mais de uma hora, como eu fazia em todo entardecer desde que eu mudara para aquela cidade. A solidão passara a ser companheira, eu aprendi a valorizar cada segundo da minha vida, cada momento e situação. O pior é a conclusão de que o tempo não volta atrás, e tudo aquilo que passou de bom ou de ruim, simplesmente passou. Não podemos controlar nosso destino. Eu não sei se a esta altura da vida eu deveria acreditar em destino, mas houve um tempo que sim, que eu acreditei. Gostaria de saber hoje, em que momento da vida eu deixei de ser feliz, ou qual foi o meu último momento pleno de felicidade. Tantas indagações que eu não sabia de onde elas brotavam, apenas brotavam.
            Sentei-me na areia e terminei de contemplar aquela maravilha da natureza. E como umas tantas outras vezes, eu chorei pensando como sou pequeno diante de tamanha plenitude, como se minha existência tivesse significado ou alguma razão. A vida é simplesmente assim, para se viver, para se arrepender, para se lembrar e ter a certeza de que somos apenas mais um, e que nossa principal missão é buscar a felicidade, a todo custo. Ou puramente fazer alguém feliz.
            Uma brisa muito fria despertou-me dos pensamentos e a noite chegara acompanhada de suas estrelas pulsando ardentes por atenção. Quantas pessoas no mundo as estavam olhando neste exato momento? Pensei então: eu era apenas mais um. Uma pontinha de paz pousou em meu peito e decidi que era hora de voltar para casa.
            A caminhada não levou mais que trinta minutos. Do portão, vi balançarem os dois coqueiros que servem de portal, envergando-se com o vento que gradativamente se fortalecia, se suas folhas formavam um balé não ensaiado. A casa estava toda escura, apenas a luar a iluminava. Bati a areia das pernas e entrei.
            Uma casa grande sem sentido de ser, sem vozes, sem movimentos, sem passos, vazia de corações. O destino que eu não acreditava levou-me até ela. Fama, fortuna, e ausência de felicidade. Todo dia eu lutava comigo mesmo para espantar maus pensamentos, meus pensamentos.
            Ouvi buzinas ao longe. Acabara de tomar banho e mal pude terminar de me vestir porque a buzina era insistente. Quando cheguei ao portão vi, apesar de ofuscado pelos faróis, o carro de meu irmão. Fazia pelo menos dois anos que não tinha contato com ele. Era a grande novidade dos últimos meses.
            – Pensei que não estivesse em casa, tentei ligar, mas ninguém atendeu – disse ele descendo e me abraçando forte, abraço de irmão.
            – Não estava em casa. Devia estar na praia.
            – Mas achei que estivesse trabalhando, e você trabalha em casa – disse após uma sonora gargalhada.
            – Quase sempre – respondi de forma polida, sem parecer rude.
            Entramos e ele deixou uma bolsa de viagem sobre o sofá. Meu único irmão, que já fora um grande amigo e confidente, mas que afastei de mim nas últimas décadas, como eu fizera com todos aqueles que me amaram, que me queriam bem.
            – E então, como vai o livro? Você está aqui para escrever não é?
            Assenti com a cabeça.
            – Eu li o último... Tinha um estilo um pouco diferente...
            – Eu sei... eu sei... Era péssimo. Acho que venho perdendo o jeito...
            – Cara, você não parece nada bem! – sussurrou ele. – Olha, vamos fazer o seguinte: saímos para jantar que eu estou faminto, a viagem foi longa, cansativa. Depois, voltamos e conversamos. Há quanto tempo você não conversa com um ser vivo, hein? E não estou falando de bom dia ou boa noite.
            Ele ainda me conhecia bem, enxergava em mim muitas vezes o que eu mesmo não conseguia ver. Era perito nisto, desde quando éramos crianças. Curiosamente, aquelas palavras foram as que eu precisava ouvir e eu me senti bem outra vez. Até um suspeitoso sorriso eu consegui libertar.
            O jantar fora muito agradável, fomos no melhor restaurante que havia por ali. Conversamos o tempo inteiro, mas nada pessoal, apenas informes do mundo exterior. Disse a ele que estava ali há três meses para escrever um novo livro, já contratado e encomendado pela editora, com prazo definido. Mas lhe disse que avançara pouco, pois me faltara a inspiração. Mais um bloqueio criativo, como tantos que eu vinha tendo nos últimos dez anos.
            Quando voltamos para casa, ainda conversávamos sobre amenidades, quando de repente ele disparou:
            – Por que você não olha mais nos olhos da gente? Nos olhos de ninguém!
            Fora certeiro!
            – Eu observei o tempo inteiro. Não olha nos olhos. Está inseguro, suas mãos tremem – uma pequena pausa. – Você está doente?
            – Doente? – tentei ainda esboçar um sorriso, mas inútil. Suspirei. – Não, não estou doente.
            – Mas você notoriamente está sofrendo! O que houve? O que está havendo com você, meu irmão?
            Uni as minhas duas mãos e apertei-as o mais forte que pude. De repente, alheio à minha vontade, lágrimas descontroladas brotaram dos meus olhos. Nem tenho ideia de quando chorei na frente de outra pessoa pela última vez. Por mais de cinco minutos minha voz ficou muda. Ele levantou-se e pegou uma garrafa de vinho e duas taças.
            – Vamos beber um pouco. Talvez ajude.
            Uma taça depois, o sangue parecia correr um pouco mais rapidamente, e uma pequena onda de calor percorreu meu corpo.
            – Que está havendo? Tem certeza que não está doente e está escondendo isto? Por favor, não faça segredo – ele praticamente implorava por alguma palavra minha.
            – Não! Juro que não estou doente, juro! Mas… mas acho que estou deprimido.
            – Deprimido?! Desde quando? Por quê?
            – Não sei. Simplesmente estou. E isto está acabando comigo! Não consigo nem mais escrever. Qualquer coisa que faço é uma porcaria. Uma merda, isso sim!
            – Sabe, acho que você não deveria ter largado a universidade. Sempre disse que dar aulas era quase uma terapia pra você.
            – É… talvez tenha razão… Mas não posso voltar a dar aulas, tenho tantos compromissos, tantos prazos.
            Ele levantou, andou pela sala, talvez pensando em algo para me dizer, me confortar. Não queria estragar a visita dele. Tantos anos que não o via… Eu tentava negar até para mim mesmo. De repente ele parou diante de algo que chamou sua atenção. Era uma revista, aberta sobre uma prateleira.
            – Esta cidade… Eu lembro!  Você já esteve lá, já morou lá… Por que a revista está aberta nesta página?
            – Ela me traz boas recordações…
            Subitamente minha voz engasgou. Não consegui continuar. Ele percebeu.
            – Espera! Essa sua melancolia, sua depressão… tem algo a ver com esta cidade?
            Sorvi a segunda taça de vinho. Meu peito parecia que ia explodir. Eu balbuciei um talvez quase mudo.
            – Cara, você já se apaixonou por alguém? Uma paixão impossível? Desses que geralmente você vê em livros ou filmes? – perguntei, fazendo-o sentar com está súbita mudança de atitude minha.
            – Tipo, um grande amor não correspondido?
            – Sim, exatamente.
            Ele suspirou e sorriu.
            – Meu irmãozinho, quem nunca teve uma paixão assim, na adolescência…
            – E se ela não acontece apenas na adolescência? Se ela acontece quando você já é um cara maduro, achando que já passou por tudo na vida?
            – Cacete! Você nunca disse nada! Quando foi?
            Eu me recostei no sofá, enchendo taça outra vez.
            – Há dez anos…