segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Um conto e o encontro - parte 1




            Eram seis e meia da manhã quando o avião pousou em solo pernambucano. Fazia sol e um calor de trinta graus já naquele horário. Cerca de cinquenta pessoas desembarcaram, após algumas horas de voo. Deixaram a chuva de São Paulo para o sol escaldante da terra do frevo.
            Felipe desceu ainda com o rosto marcado por ter ficado bom tempo encostado na janela. Ainda estava com a perna ligeiramente dormente. Ficara fora por umas três semanas realizando um trabalho de pesquisa que resultou em uma publicação de cinco páginas em uma conceituada revista de renome nacional. Tinha alcançado o auge, até o momento, de sua carreira jornalística. Passara boa parte do ano em viagens e queria aproveitar o último mês do ano para merecidas férias e descanso. Já tinha vários projetos aprovados e engatilhados para o ano seguinte.
            Após pegar sua mala, dirigiu-se até o saguão, onde um amigo o esperava. Com poucas pessoas circulando no aeroporto às sete da manhã, em pleno domingo, não foi difícil avistá-lo. Rodrigo era um amigo de longa data. Professor de universidade, formado em letras, era uma espécie de amigo de infância que encontrou apenas aos vinte anos de idade. Deram-se as mãos e abraçaram trocando afáveis cumprimentos.
            - Mas rapaz! Quanto tempo!
            - Que nada… Faz o quê… uns dois anos? - riu Rodrigo, enquanto punha as poucas bagagens no seu carro.
            - Não, teve o São João do ano passado, lembra?
            - Puta que o pariu! - gargalhou. - Você ainda se lembra daquela merda? Fiz questão de apagar da memória completamente.
            - Mas eu não - continuou Felipe, puxando a porta do carro enquanto o outro dava a partida. - Fui eu e Ana que tivemos que ficar limpando a sujeirada que você fez. Ela não queria ver você pintado nem de ouro.
            - Eu avisei, não podia misturar bebida. Cerveja, vodca e cachaça… Queria o quê? Deu merda!
            E os dois continuaram gargalhando ainda um bom tempo, lembrando a reunião que Felipe oferecera em sua casa para alguns amigos dos tempos de faculdade. Rodrigo misturara tudo que era tipo de bebida e a festa terminou cedo para ele. Depois dessas lembranças, a conversa prosseguiu por assuntos mais sérios. Quando Felipe perguntou sobre o trabalho, as aulas, uma pergunta corriqueira, na qual ele esperava uma resposta banal, o amigo sorriu.
            - Bem, era exatamente aí que eu queria chegar… - e diante da expressão interrogativa do outro, ele prosseguiu. - Na verdade, eu gostaria de te pedir um grande favor. Sabe, daqueles favores de irmão, de amigo do peito…
            Felipe interrompeu na hora, soltando um suspiro, balançando negativamente a cabeça, ao mesmo tempo em que sorria.
            - Eu devia ter desconfiado. Você me manda um e-mail, depois de meses sem contato, depois se oferece para me apanhar no aeroporto… Eu imaginava que tinha algo por trás disso. Provavelmente um favor que eu não gostaria muito de fazer. Na verdade, um favor que eu não gostaria nada de fazer.
            - Ora! Não seja tão dramático. É coisa simples…
            Rodrigo principiou contando que este ano tinha sido muito proveitoso nas aulas, que tinha aprovado um projeto de pesquisa, tinha conseguido também aprovar um projeto de extensão. Depois de dez anos na carreira universitária, as coisas finalmente corriam como ele sempre queria. Mas ele se ateve ao projeto de extensão. Apesar de Felipe estar longe do ambiente acadêmico há bastante tempo, sabia o que se significava tudo que ele dizia. Ele detalhou seu projeto, que era simples, um conjunto de aulas, de minicursos na verdade.
            - Então, são minicursos em áreas diferentes do que eles estudam no curso normal. E em nível acessível a todos, inclusive, para outros cursos também.
            - E você quer que eu participe de um desses minicursos? Que eu dê um desses minicursos?
            - Exatamente! A proposta é justamente que os profissionais deem a sua visão, o seu modo de pensar, de escrever. Diferente de uma disciplina que eles encontrariam na faculdade. E para falar sobre redação jornalística, criação, não vejo ninguém melhor que você. Na verdade, não conheço. É um curso de uma semana apenas, duas horas cada dia. Não vai tomar muito seu tempo. Pense que é uma palestra prolongada, diluída ao longo de cinco dias. Moleza!
            - Eu nunca dei aula. Não tenho vocação, paciência, sei lá… Mas, por nossa amizade, vou aceitar. É a maior roubada que você já me meteu - olhou em volta, estava quase chegando. O carro parou diante do edifício onde morava. - Bem, e quando é que é que eu tenho que dar esse minicurso?
            - Hum… na verdade começa na próxima semana. E já tem trinta pessoas inscritas e confirmadas.
            - O quê?! - e bateu a porta do carro com relativa força. Olhou para dentro do carro, pela janela, e rindo, disparou: - Você é um tremendo de um filho da puta!


sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Prêmio Nobel de Química 2012

Ganhadores do Nobel de Química de 2012 são os norte-americanos Robert J. Lefkowitz e Brian K. Kobilka


Descobrir como as células se comunicam umas com as outras, e com o ambiente, vem exigindo da pesquisa em biologia celular um grande empenho durante as últimas décadas. Parte importante desse conhecimento é possível hoje graças ao trabalho dos norte-americanos Robert J. Lefkowitz e Brian K. Kobilka, ganhadores do Nobel de Química de 2012. O estudos que levaram a Real Academia de Ciências da Suécia a conceder-lhes o prêmio versam sobre a família conhecida como “receptores acoplados a proteínas G”, sistema modular que atua na transmissão de ampla variedade de sinais, entre as células e entre grandes distâncias do corpo.

Lefkowitz é pesquisador do Instituto Médico Howard Hughes e do Centro Médico Universitário Duke, de Durham (EUA), e Kobilka da Escola Universitária de Medicina de Stanford (EUA).

Os receptores acoplados à proteína G são responsáveis pela identificação dos sinais recebidos através do olfato, sabor ou tato. Também respondem pelas reações do corpo humano a substâncias químicas como a adrenalina, dopamina, histamina e serotonina.

Lefkowitz, informa o site da Fundação Nobel, iniciou suas atividades para encontrar os receptores nas células, em 1968, com o uso de radioatividade. Adicionou isótopo de iodo a vários hormônios e, graças à radiação, conseguiu identificar vários receptores, entre eles o receptor da adrenalina. Após isolar o receptor do interior da célula, a equipe começou a entender como ele funciona.

Outro grande passo foi obtido durante os anos 1980. O recém-chegado Kobilka aceitou o desafio de isolar o gene que codifica o receptor da adrenalina no gigantesco genoma humano. Uma abordagem criativa permitiu-lhe alcançar seu objetivo. Quando a equipe analisou o gene, descobriu que o receptor era semelhante ao que desempenhava a função de captar a luz no olho humano. Imaginaram, então, que existia toda uma família de receptores semelhantes que atuavam da mesma maneira.

Veja no site da Fundação Nobel outras informações sobre as pesquisas de Lefkowitz e Kobilka aqui.

Fonte: Carlos Martins – Assessoria de Comunicação da SBQ – Com informações do jornal O Estado de S.Paulo e do site da Fundação Nobel

sexta-feira, 27 de abril de 2012

Poema: Quando estamos juntos


Quando eu te vejo
Não sei explicar o que sinto
É algo tão fantástico
Inebria mais que absinto.

Quando eu te acaricio
Não sei dizer o que se passa
Que preenche todo o vazio
De dentro de minh’alma.

Quando estou contigo
O mundo inteiro não me importa
Apenas o nosso amor tem sentido
Apenas o nosso amor me basta.

Quando estás comigo
A saudade torna-se lembrança
Os problemas se esvaem
Como preocupação de criança.

Quando estamos juntos
O amor é a nossa segurança
O amor é o nosso mundo
A vida é a nossa aliança.

domingo, 18 de março de 2012

Poema: Poema da Conquista

Eu te vi radiante,
Ali, um pouco distante;
Em meio a tantos outros
Vi teu olhar penetrante.
Não sabia como agir,
Fugir deles, fugir de mim…
Nunca agi assim.
O coração a pulsar apressado
Ansioso pelo teu sorriso
Ansioso pela tua voz
Ansioso pelo toque da tua mão,
Discreto, inquieto…
E a tua respiração pausada,
E a tua boca entreaberta,
E as tuas longas madeixas
Deslizando, embelezando.
Corações aos pedaços,
Atirados sobre ti…
E me lembra os grandes olhos
Altivos, faceiros, pudicos…
E me lembra a voz
Fina, firme, melodiosa…
E me lembra o sorriso
Lindo, lindo, lindo…
E me dói
Porque sou a carente Terra
E tu és o imponente Sol
E não posso alcançar-te,
Apenas, inapropriadamente,
Desejar-te… 


segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Poema: Triste Ironia

O coração sofre,
A alma padece,
O corpo sente
A tua ausência.
Eu rogo em prece
Inerente, imprudente
A tua complacência
E deixa-me olhar-te,
Como o faminto
Olha o pão
Deixa-me desejar-te
Como o sedento
Deseja a água
E que não tenha sido
Em vão
Aquele sonho opulento.
Espero não ter morrido
Para ti,
Mas já, desde já
Sei que foste tu
Um sonho, uma ilusão.
Fantasia
Sem norte e sul
Sem direção.
E foi terrível
Triste ironia,
Achar que este pobre,
Faminto e sedento,
Pudesse sim,
Em algum momento,
Receber o teu sorriso,
Receber o teu carinho,
Receber o teu beijo.
Ah, triste ironia
Do destino,
Fez-me rir e chorar
Fez-me menino
A amar
Um amor de desatino.
E eu aguardo,
Em estado de estupidez,
Um sorriso, um carinho,
Um beijo talvez.


quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Conto: ESTOCOLMO (parte final)

*          *          *


            A conversa dos enfermeiros me enervou. Estocolmo, eu pensei. Deviam estar falando de mim. Evidente que era o caso mais comentado dos últimos dias. Estava em todos os jornais locais, até mesmo nos nacionais. Eles deviam se referir à Síndrome de Estocolmo, quando a vítima cria afeição pelo seu agressor. Não sei se era o caso, se a paixão repentina de Isabela por mim seria um mecanismo de defesa para a sua sobrevivência. Pelo menos seria o alegado pela promotoria na ocasião de meu julgamento. Que importava agora? Ela estava morta. Ela não poderia dizer nada em meu favor. Terei o destino que tanto temi, mas que tanto mereço.
            Todos aqueles dias no hospital, algemado à cama, sem notícias. Sem visitas, apenas policiais apareciam por lá, e um detetive que me fora ver duas vezes. Parecia ansioso pela minha melhora, queria me enfiar numa cela vagabunda. Na minha cabeça, além da terrível lembrança do que acontecera à Isabela, também havia a incerteza sobre as vidas da minha mãe e do meu irmão. Estariam realmente bem? Por quanto tempo eu ficaria isolado? Por quanto tempo me manteriam à margem das coisas, sem a possibilidade de defesa, sem ouvir a minha explicação? Aceito todo tipo de punição, pois a pior dor já me fora causada. Fecho os olhos mais uma vez e a imagem dela me vem outra vez à mente. Mas não a imagem daquela semana em que ela ficara confinada, encarcerada, mas todas as outras, de tantos anos. A imagem da garota por quem me apaixonei perdidamente.

            Após uma semana, tive notícias concretas sobre minha família. Estavam bem. Quando minha mãe me viu no hospital, disse-me que estava tentando conseguir um advogado, mas não tinham dinheiro, que teriam de recorrer à defensoria pública Mas ela estava esperançosa. Eu pedi perdão por todo aquele desgosto, por ter falhado como filho, como ser humano.
            “Perdão por essa vergonha…”, eu disse antes de ela deixar o quarto.
            “Você não tem do que se envergonhar, meu filho”, falou ela, a voz cansada. Sua aparência estava mudada. Olheiras fundas, cabelos assanhados. Envelhecera alguns anos. “Tudo que você fez foi por sua família, meu querido.” E ela me acariciou os cabelos com a ponta dos dedos finos. Ela era meu tudo, e apesar dos acontecimentos, estava ali firme, pronta para enfrentar mais aquele obstáculo em sua vida. Graças a Deus ela estava bem, e eu sabia que ela não fraquejaria, então eu não poderia esmorecer, e tinha de ser resoluto e enfrentar com dignidade os percalços que a vida apenas estava começando a impor. “Até mais, meu querido”. Ela caminhou chorosa até a porta. Queria ter falado mais com ela, mas a voz estava embargada. Foi quando, de repente, algo não fez sentido para mim. Eu não tive ainda a oportunidade de falar nada, para ninguém. Como ela soube daquilo? Não fazia sentido. Gritei. “Mãe!”
            Ela parou, já na porta. Seus olhos cansados se voltaram para mim. De repente, uma onda de calor tomou conta do meu corpo. Eu disse: “Eu te amo, mãe!” Ela sorriu e saiu.
           
            À tarde, naquele mesmo dia, entre um cochilo e outro, com as dores mais controladas, eu pensei ter morrido. De repente estava no paraíso. Para se estar lá é preciso morrer, conclusão óbvia. Na verdade, eu sonhei. A televisão estava desligada, há alguns dias não havia mais permissão para isso, desde que eu despertara totalmente e ficara isolado naquela enfermaria. Um policial entrou dizendo que eu tinha outra visita. Foram apenas alguns segundos, meu coração pulava dentro de meu peito. O suor exalava toda a adrenalina de meu corpo, toda a tensão. Meus olhos continuavam vidrados na porta, torcendo para que eles não se decepcionassem. Mas não iriam, não tinham como, o meu coração já se certificara disto.
            Ela entrou lentamente. Estava linda, linda como sempre deveria estar. Nada lembrava aquela garota assustada de uma semana atrás. Tinha o braço esquerdo apoiado numa tipoia e exibia um grande curativo no ombro. Ela veio até mim.
            “Você está viva?”, foi a única coisa que consegui dizer naquele momento.
            “Graças a você”, disse ela, sorrindo. “Você salvou minha vida!”
            “Não, minha Bela, você foi que salvou a minha.”
            Ela tocou em minha mão esquerda, apertou-a.
            “Eu já prestei o meu depoimento, disse que você fez tudo por mim. Mas disseram que eu tenho que passar por avaliação psiquiátrica… que eu posso ter desenvolvido a Síndrome de Estocolmo”, ela disse, sorrindo. Como era bom vê-la sorrir.
            “Eu posso imaginar. Mas não tem problema… Você está viva! Nada mais importa!”
            Meu contentamento era notório. Eu quase não parava de sorrir. Queria festejar. Ela não largou minha mão durante o resto do encontro.
            “Sabe o que é engraçado nisto tudo?”, perguntei, observando seu olhar curioso. “Agora sou eu que estou acorrentado…”
            Ela concordou com um sim tímido, deixando escapar mais um sorriso, e se aproximou de mim dando-me um leve beijo nos lábios.
            Eu me senti em paz. Seria aquele um final feliz? Quem sabe. O bom da vida é justamente não sermos conhecedores de nossos destinos, e sim fazermos o nosso destino. Só que agora, no meu caso, eu iria lutar com todas as minhas forças pelo meu. E naquele momento específico, eu estava em paz, eu estava feliz.



quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Conto: ESTOCOLMO (3ª parte)


            “Ele a amava, mas ela não sabia… Para ela, ele era apenas um amigo…”
            Desde os primeiros dias quando a conheci, ainda caloura, esta era a frase que eu imaginava em meu epitáfio, ou em algum posfácio meu. Achava-a interessante. Ainda no afã do recente amor, pensava no meu momento póstumo para tentar lidar com o meu presente, corrigi-lo se fosse possível. Não queria que ela me visse como apenas um amigo. Mas como poderia, se mal trocávamos palavras. Eu admirei sua beleza desde os primeiros momentos, mas não consegui lidar com os meus sentimentos adolescentes. Eu devia ser uns quatro ou cinco anos mais velho, já estava há três na universidade quando ela entrou e eu fui pagar uma disciplina com ela. Depois de algumas matérias juntos, frases trocadas que não chegavam a completar um diálogo, percebi o quão inocente eu era, como tentava me iludir, achando que uma garota linda e rica, rodeada de amigos, poderia ter olhos para alguém como eu. Ainda por cima, tímido!
            A paixão inicial tornou-se um amor um tanto bucólico. O fato de eu ter desistido dela fez com que eu a cuidasse de longe, a protegesse sempre que possível, todavia nunca deixando a penumbra. Mas não foram tantas vezes assim. Talvez a mais emblemática tenha sido evitar que um cretino em um bar abusasse dela. Acredito que ela nunca tenha desconfiado da briga que surgiu após ela deixar o local. E sempre que ela arrumava algum namorado, eu me afastava. Isto não me impedia de viver, de ter minhas paqueras, mas Isabela estava sempre permeando meus sonhos, como uma inspiração eterna para mim. A única pessoa a quem tive coragem de contar todos esses acontecidos foi ao meu irmão. Orgulhava-me da nossa amizade, da nossa cumplicidade, mesmo em meio às suas crises, ele sempre fora o meu confidente. Na primeira oportunidade, quando talvez a lucidez tenha pairado sobre ele, e se deu conta de que não tinha como pagar a dívida com os traficantes, ele se lembrou do meu amor platônico, principalmente do fato de que ela era de uma família com posses, que poderia pagar um alto resgate. Sabe-se lá o que fora tramado por esses bandidos. Impressionante a velocidade com que as coisas se ajustam e as conclusões se fazem, nas frações de segundo em que você a pessoa que jurou proteger diante de si, indefesa e maltratada. Denunciar aqueles bandidos implicava na morte imediata de minha mãe e meu irmão. Que não eram apenas aqueles dois, eu podia imaginar. Essas coisas nunca se fazem a duas ou três mãos. A casa alugada em meu nome e a minha posição ali me tornavam cúmplice, muito pior, pois o alvo era uma colega rica da universidade. Eu estava fodido e mal pago, sem atenuantes. Oficialmente fazia parte de um crime hediondo.

            Ela me olhou fixamente, no momento em que meu rosto saiu da penumbra. O olhar arregalado denunciou que ela havia me reconhecido. Era o complemento à história que eu acabara de contar para ela, tirando a parte dos meus sentimentos.
            “Você… eu conheço você…”, balbuciou, os lábios machucados tremiam.
            Ela iria me odiar ainda mais. Minha história, tão absurda, tão fictícia aos ouvidos dela…
            “Então realmente… é tudo verdade o que você disse”, concluiu, deixando-me em suspense. Não imaginava aquela reação.
            “Eu sei… quer dizer, todos do curso sabem dos problemas da sua família”, disse num tom de voz diferente, compreensivo.
            “O que você quer dizer, Bela?”, chamei-a enfim pelo apelido pelo qual era conhecida por todos os amigos.
            “Quando você trancou a faculdade, todos ficaram sabendo, pois você era dos melhores do curso. Não dá pra não conhecer você. Ficamos sabendo então dos problemas da sua família… principalmente com o seu irmão.”
            “Mas… mas… eu não sabia de nada. Nunca contei a ninguém de lá, não queria que me vissem de forma diferente… que tivessem medo de mim… ou algo parecido.”
            “Medo? Por que motivo alguém teria medo de você?”
            “Um irmão metido com drogas? Acho que isso é motivo suficiente. Talvez você, felizmente, nunca tenha visto os olhos do preconceito. Não há nada pior!”
            “Mas eu não sou assim! E afirmo que todas as pessoas que se importam com você não pensam dessa forma”, e ela segurou minha mão, a mão de seu sequestrador. Aquele gesto impensado dela, talvez, fora o gatilho para eu desabafar anos de amargura, aprisionamento. Eu também fui um refém de mim mesmo, dos meus medos, dos meus receios mais inconcebíveis. Eu chorei, chorei da mesma forma que chorei o amor não correspondido dela no meu travesseiro, chorei por todas as vezes que tive que recusar uma ajuda, por orgulho, por querer vencer apenas pelos meus méritos, chorei por meu irmão e minha mãe. O choro de um homem, o choro de um menino. O toque dela em meu rosto, o afago carinhoso que tanto sonhara, de forma irreal, o abraço quente, terno, eu a olhei nos olhos. Não vi raiva, ódio, tampouco vi piedade. Os olhos delas nos meus mostravam respeito, até um agradecimento, choravam junto com os meus. Sua boca tão próxima… Entendi, ou já tivesse entendido em algum outro momento do passado, que a minha covardia em nunca ter sequer tentado viver aquele sentimento, se devia não à minha timidez, mas à minha incapacidade de lidar com as diferenças, por eu sempre me colocar na defensiva. O primeiro a sentir preconceito de mim, fora eu mesmo. Tornei a fitar seus olhos.
            “Não me perdoo por você estar aqui”, disse, afastando-me dela. “A violência que eu cometi contra você é imperdoável!”
            “Mas se não fosse você, teria sido outro. Na verdade, agora eu vejo como fui feliz por ter você aqui.”
            Era chegado o momento de revelar o real motivo por ela ter sido escolhida? Contar mudaria tudo mais uma vez. Mas a certeza de minha derrota ao final dessa história me deu forças para revelar tudo, não havia sentido em esconder nada dela.
            “A culpa não foi sua… do seu irmão talvez… nem dele…”, ela soltava palavras tentando aliviar a dor que eu sentia e demonstrava.
            “Não, Bela, foi por minha causa”, respirei fundo. “Foi por causa do meu amor por você…”
            Aquela revelação transformou-a. Não consegui ler as suas expressões, os seus sentimentos, não estavam mais claros para mim. Ela largou minha mão e voltou a se aproximar do canto da cama. O sol estava mudando de posição, o lado em que ela estava já era pouco iluminado. Estava pensativa.
            “Perdão…”, disse por fim e me levantei, deixando-a só.
            Andei pela casa, fui até a varanda. Soquei várias vezes uma pilastra descascada até que sangue saísse de meus punhos, até que a dor fosse tão grande quanto a dor que eu provocara nela. Fiquei sentado ali, no chão, olhando as galinhas ciscando no terreiro, as vacas ao longe paradas, ruminando. Meu futuro era incerto. Cadeia, morte talvez, era uma vida sem volta. Só uma coisa eu tinha que fazer, defendê-la a todo custo. Preservar sua vida, nada mais importava.

            Escurecia quando voltei ao interior da casa. Dirigi-me ao quarto, pronto a enfrentar o destino que me fora reservado. Não ouvia nada, o silêncio era quase completo, apenas o cricrilar dos grilos. A casa estava cheia deles. Antes o barulho me enfurecia, mas naquelas circunstâncias, era como se fossem nada para mim.
            No quarto, Isabela estava deitada, não chorava. Percebi que ela dera um nó na blusa, escondendo o seio que ficara à mostra mais cedo. Sentei-me ao lado dela e num impulso, acariciei seus cabelos. Ela tomou um susto, mas quando percebeu que era eu, relaxou e aceitou meu carinho.
            “Está com raiva de mim?”, perguntei, após inflar o peito de coragem.
            “Como se pode ter raiva de alguém, depois que esse alguém confessou seu amor…”
            Ela virou-se para mim, com aqueles olhos que por muitas vezes apenas vi à distância.
            “Tem coisas na vida que não se tem explicação”, ela continuou. “Sabia que sempre percebi algo diferente em você?”
            “Eu achava que você nem sabia que eu existia, sempre tentei ficar distante.”
            “Digamos que você não foi tão eficiente nesta questão”, disse, pela primeira dando um sorriso. Acariciei sua face, sentindo a suavidade de sua pele.
            “Você é tão linda…”, eu lhe disse, não tirando dela os meus olhos. Eu nem me atrevia a piscar. De repente ela me puxou no braço, aproximando-me dela. Não ofereci resistência e me dirigi ao seu encontro. Beijei seu rosto, deixando meus lábios sentirem o calor de sua pele. Aos poucos nossos lábios se encontraram, lentamente caminhei em direção aos seus. O beijo foi surpreendente, não como tantas vezes eu fantasiara, mas muito melhor do que em todos os meus sonhos. Era real, estava acontecendo. Abracei-a, envolvendo meus braços em seu corpo. Senti o seu coração bater acelerado e a respiração ofegante. Após o beijo, afastamo-nos um pouco e voltamos a nos encarar. Os olhos dela brilhavam.
            “Eu nunca pensei”, falou ela. Baixou os olhos, lágrimas tornaram a escorrer. “Queria que isso não tivesse acontecido aqui…”
            Nunca teria acontecido se não fosse aqui, pensei, sentindo um aperto no peito.
            “Tenho que tirar você daqui!”
            “Não há como… não vou cortar a minha perna para arrancar essa corrente”, disse, resoluta, após ver que a penumbra ia-se transformando em escuridão. “Já não posso esperar nenhum milagre. Agora é com meus pais.”
            O silêncio voltou a se abater sobre nós dois, como se a realidade entrasse sem bater na porta arrancando de nós dois aquela felicidade irreal. Fiquei ao seu lado o resto da noite.
            Ainda de madrugada, pouco antes da alvorada, voltei para a sala. Seria um risco imenso caso os dois chegassem e me vissem deitado na cama com ela. Quantos dias mais seriam necessários para que o pesadelo findasse.

            Três dias se passaram. Três dias de uma pseudo-felicidade. Três dias em que as horas passaram como o voo de um falcão-peregrino em busca de sua presa. Mal o sol iluminava trazendo os prenúncios de um novo dia, ele já se punha crepuscular, trazendo o afago da noite. Conversávamos, conhecíamo-nos cada vez mais. Afinidades eram descobertas, talvez nada mais emblemático para mim que descobrir o desprezo dela sobre divergências sociais. “Somos feitos da mesma matéria!”. Beijávamo-nos como um casal de apaixonados. Não nego o meu desejo de amar carnalmente aquela mulher, mas a realidade era por deveras dura e não havia espaço para aqueles pensamentos. Mas que o desejo era forte, isso era.

            Era tarde de um sábado quando os dois voltaram, após longa ausência e conversas apenas pelo celular. O choque de realidade era maior do que eu podia suportar. Em alguns momentos senti que a reclusão forçada nada mais era do que uma reclusão. Um retiro para a descoberta daquele amor reprimido por tantos anos. Os dois mal-encarados estavam de volta, mas desta vez voltaram de armas em punho. Cada um carregava um revólver. Jorge segurava um .38 de cinco tiros, com aparência de novo, ainda preservando detalhes cromados. Zóio empunhava também um revólver do mesmo calibre, porém mais antigo, como se tivesse muitos anos de estrada. Ambos estavam nervosos, um tanto eufóricos.
            “Acabou, rapaz!”, disse Jorge, pondo uma sacola de papel sobre a mesa, recheada de notas de 100 reais. “Duzentos mil!”
            Zóio ficou zanzando pela casa, indo da cozinha à varanda, parecia extremamente desconfortável. Ele suava bicas.
            “São quinze mil pra você, o resto é paga pelo seu irmão.”
            “Não quero!”, disse, enfático, procurando não alterar a voz.
            “Como é que é? Cê tá de caô com a gente?”, gritou. “Escutei bem ou cê disse que não queria o dinheiro?”
            “Não! Não quero fazer parte dessa merda toda!”
            “Perdeu o juízo, garoto?”, disse Zóio numa das passagens próximo de mim. “Quer morrer aqui, quer?”, e apontou a arma para a minha cabeça.
            “Eu só não quero nada disso. Que fique a paga pelo meu irmão.”
            “Se acha que isso livra você, está muito enganado, entendeu? Puta que o pariu, agora o cara tem consciência!”
            Zóio apareceu de volta onde estávamos. “Vou pegar a menina agora!” Jorge abaixou a cabeça soltando um ligeiro: “Fique a vontade!”, enquanto arremessava uma chave para ele. O sujeito então caminhou para dentro do quartinho, com um sorriso nojento no rosto.
            “Espera um pouco, Jorge! Que é que está acontecendo? O que ele vai fazer com ela?”, meu coração entrou em desespero já sabendo da resposta.
            “Ah! Moleque! Ele vai se divertir um pouco. Se você quiser, vai poder ir também, mas depois tá?”, e gargalhou na minha cara. Ouvi um grito assustador vindo do interior. Aquilo não podia estar acontecendo.
            “Por favor, Jorge, manda ele parar! Vocês já conseguiram o dinheiro, não precisa fazer nada disso.”
            “Carece ficar preocupado não, rapá! A menina já tá morta mesmo!”
            O meu sangue gelou. Quando ele se virou e se dirigiu à porta do quarto, peguei uma faca que estava sobre a mesa e corri até ele, enfiando em suas costas.
            “Filho da puta!”, ele ainda berrou, chamando atenção de Zóio que veio pra cima de mim, derrubando-me no chão. Mordi sua mão, quando este tentou me esganar. O sangue avolumou-se em minha boca, juntamente com um naco de carne. Os olhos dele eram pura fúria. Socou-me e vi estrelas por um momento. Um tiro ecoou e senti minha barriga doer, um calor úmido nas minhas costas. Virei-me e vi Jorge com a arma, pronto para dar outro tiro em mim. Era o fim, pensei, mas vi Isabela pegando a corrente que tanto tempo a mantivera presa, e que fora retirada para que o desgraçado abusasse dela. A corrente agora em volta do pescoço de Jorge, sufocando-o, mas por pouco tempo, o tempo em que ele se virou acertando uma cotovelada em sua barriga. Ela caiu sem fôlego sobre a cama. Nesse meio tempo, Zóio correra para fora do quarto, em busca da sua arma. Dois estampidos secos foram ouvidos, seguido de vários gritos. Um terceiro tiro foi ouvido quando Jorge correu para ver o que tinha acontecido. Ele caiu de joelhos na porta do quarto, arqueando o corpo para trás, com um mancha negra na testa. Vultos adentraram e se posicionaram na porta. Várias vozes eram ouvidas. Tentei me levantar e outro tiro soou. Fechei os olhos. E então senti um corpo caindo sobre mim. Isabela tombou em meus braços. Rapidamente seu corpo parcialmente nu foi tomado de sangue. Aquilo não podia estar acontecendo.
            Em questão de minutos havia muita polícia no local. O tiro que fora dado nas costas estava tirando-me as forças rapidamente. Jornalistas chegavam e se amontoavam do lado de fora. Flashes iluminavam a noite daquele bairro de periferia, quase uma zona rural. Eu estava algemado sobre uma maca. Enfermeiros cuidavam de mim. Vi viaturas, ambulâncias. Percorri os olhos à procura de Isabela e a vi levada para outra ambulância. Tinha um respirador no rosto. Um policial se aproximou de mim.
            “Não sei o que aconteceu aqui, rapaz. Não sei o que fez com que aquela menina se atirasse na sua frente para salvar a sua vida. Mas ela salvou, isso salvou… Só que você vai pagar muito caro por tudo isso. Vai apodrecer na cadeia, seu desgraçado!”
            Queria ter falado algo, ter dito algo. Mas não consegui, não tive voz. Chorei mais uma vez, com a lembrança do corpo inerte da minha Bela sobre meus braços. E desmaiei.



terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Conto: ESTOCOLMO (2ª parte)

*          *          *


          Eu estava voltando pra casa, vindo da universidade. A poucos metros do portão, vi um vulto caído, como se estivesse dormindo. De vez em quando apareciam uns bêbados que, sem destino, acabavam dormindo na calçada. Ele estava embaixo da árvore que fica defronte ao muro de minha casa. O susto foi grande quando, ao passar ao seu lado, deparei-me com meu irmão, quase irreconhecível. Os hematomas, a sujeira, a roupa em trapos, tudo o deixava irreconhecível, ou quase.
          “Que houve, meu irmão?!”, perguntei assustado. “Que aconteceu com você, cara?”
          Ele gemeu um pouco, dava para sentir as dores. Talvez tivesse alguma costela quebrada, pois quando tentei levantá-lo ele urrou de dor. Mesmo assim, com alguma dificuldade, consegui levá-lo para dentro. Para nossa sorte, minha mãe ainda não havia voltado do trabalho, só chegaria ao final da noite.
          Quando já estava em seu quarto, de banho tomado e curativo feito, voltei a inquiri-lo:
          “E então, vai me contar ou não o que aconteceu?”
          Nunca tivemos segredos. Sempre soube dos seus problemas, afinal ser o irmão mais velho e ter uma mãe com problemas de saúde implicava em ter mais responsabilidades. Muitas vezes esconder problemas. Há cinco anos ele havia se envolvido com drogas, passado por clínicas de reabilitação, levado embora grande parte das economias da família. Há alguns meses me pareceu que ele havia tido recaídas, mas como não havia sumido nada de dentro de casa, e como ele mudou pouco suas rotinas, ainda era uma hipótese. Todavia, aquele estado dele demonstrava que estivera errado, mais errado em não o ter interpelado no primeiro momento que desconfiou. Se não estava trabalhando, onde teria conseguido dinheiro para drogas?
          “Com uns caras…”, respondeu ele após alguns sacolejos. “Estou devendo muito”, disse não contendo as lágrimas. Nunca vi o meu irmão tão arrasado. Não pelas pancadas que levara, mas pelo abalo psicológico. Apesar de ser alguns anos mais novo, era mais duro do que eu e mesmo nas piores situações em que já se encontrou, não chorava. “Desculpe”, ele disse.
          “Mas o que houve? Quanto você está devendo?”, eu sabia que a questão era dinheiro.
          “Muito, não podemos pagar…”
          “Sempre se dá um jeito”, eu disse.
          “Mas acontece que eles querem falar com você… Desculpe.”
          Aquelas palavras acabaram comigo. Sempre ajudei o meu irmão, mas sempre evitei chegar próximo ao meio em que ele se envolvia. Agora ele me jogou na sujeira dele. A minha piedade transformou-se em raiva. Eu precisava ter uma vida regrada para conseguir terminar o curso, não perder a bolsa, conseguir um emprego, ajudar minha mãe no que fosse possível. Ela só podia contar comigo. Decidi que já era o momento de dar um basta naquela situação. Tinha que colocar a polícia no meio, entregar a quem de direito. Faria isso no dia seguinte.
          Foi pouco antes do horário de minha mãe chegar que a campainha soou. O soco na boca do estômago me fez ficar sem respirar por alguns bons segundos. Enquanto isso, outro me segurou pelo pescoço, dando-me uma gravata que me deixou sem conseguir falar. Foram rápidos, disseram que tinham um serviço, que seria o pagamento pela dívida do meu irmão. Quando me recusei, já esperando outro golpe violento, a violência veio nas palavras.
          “Não tem jeito… você já está na jogada, otário!”, disse o sujeito mal-encarado conhecido como Zóio. “E se você fizer alguma gracinha, eu mesmo corto o pescoço da sua mamãezinha…”
          Aquela frase, dita com ênfase, de forma cruelmente assustadora, morreu no meu ouvido. Não sei o que doía mais, a ameaça sobre a vida de minha mãe ou a dor da traição do meu irmão, que entregara cópias dos meus documentos àqueles bandidos. Com eles, alugariam uma casa na periferia da cidade, como eu viria a descobrir em seguida. Realmente, era tarde demais, eu já estava envolvido.

          Quase um mês depois eu fui arrastado para o meio do nada, sem ter o menor conhecimento do que estava por vir. Algo me dizia que era um cativeiro, tinha trancas, correntes, pouca alimentação, pouca iluminação, além de ser quase totalmente isolado da civilização. O bairro era muito pobre, com muitos casebres e sítios, praticamente um meio rural. A certeza veio quando, em plena madrugada, a porta fora aberta e os dois adentraram com uma jovem que já havia visto antes, na universidade. Não acreditei quando Isabela apresentou-se diante de meus olhos, vendada, amordaçada, amarrada. A traição do meu irmão fora maior do que eu imaginava, ele entregou para eles a garota por quem eu era apaixonado.


segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Conto: ESTOCOLMO (1ª parte)

Estocolmo



            “Estocolmo?”, perguntou o primeiro.
            “Sim, é isso que estou falando”, respondeu o outro.
            “Mas por que Estocolmo? É isso que quero saber.”
            “Estocolmo é uma cidade da Europa, sua anta”, respondeu um terceiro, intrometendo-se na conversa. “É a capital da Dinamarca!”, completou, arrasador.
            “Que idiota!”, riu o segundo a falar. “Estocolmo é a capital da Suécia!”
            “Mas ninguém ainda me respondeu o porquê de Estocolmo”, desabafou o primeiro.


*          *          *


            Acordei com o barulho da televisão. Não entendia o que se passava. As lembranças eram vagas e vinham em golfadas. Apesar do frio, comecei a suar. Senti um palpitar mais acelerado e quase pude ver o coração pulsando descompassado sob a bata. Tornei a fechar os olhos.
            Acordei mais uma vez. Não sei quanto tempo dormi desta vez, desde a última vez. Não sei se foi antes ou depois. O tempo era travesso e algo me dizia que ele queria pregar-me uma peça, uma triste peça. Arregalando os olhos, até minhas pupilas adaptarem-se àquela penumbra, os contornos foram-se fazendo aos poucos, e quase pude visualizar uma pequena luminosidade na fresta da porta. As dores voltaram. As dores eram intermitentes, intensas. Num dado momento, mesmo tentando controlar, eu chorei.
            Acordei pelo terceiro dia consecutivo durante a madrugada. O frio era absurdo e apenas uma bata me cobria. Aos poucos a memória ia se reestruturando, à força. As dores haviam diminuído significativamente, mas eu ainda não conseguia me mexer. Uma força maior me prendia à cama. Apesar do frio, eu continuava a suar.


*          *          *


            O calor era insuportável. Era o terceiro dia ali, isolado do mundo. Ela havia parado de chorar havia algumas horas. De uma fresta da porta, eu a olhava deitada no colchão. Continuava com a mesma roupa, agora suja, encardida.
            Voltei ao meu lugar de vigília, lendo uma revista de seis meses atrás. Notícias velhas, nenhuma novidade. O engraçado eram as horas que passavam vagarosamente e, a cada minuto, mais lento parecia o andar dos ponteiros. Senti vontade de abrir aquela porta e falar com ela, pedir perdão, dizer que eu fui contrário àquela atitude, àquela violência. O problema é que quando se tem outros problemas, o precipício real é sempre pior do que o imaginado. Como explicar a ela que eu não sabia. Como dizer que a violência que ela sofria era menor do que a violência que eu estava sofrendo.
            As horas passavam, o sol percorria o arco perfeito e agora se punha no horizonte. O que seria mais belo: o raiar do sol ou a sua despedida. Tons em vermelho se faziam presentes e antes eu não tinha tempo de perceber isso. Como agora pequenas coisas se faziam tão importantes.
            O telefone vibrou na Ave Maria.
            “Ela está dormindo”, respondi. “Não fez mais barulho, não reclamou.”
            Ele disse que não apareceria mais e perguntou se ainda tinha comida suficiente.
            “Tem sim, tem bastante.” Concluí, minha vontade sincera foi soltar um ‘infelizmente’ no meio da frase. Aquilo verdadeiramente me consumia. Deitei o telefone sobre a revista velha e caminhei para esticar os ossos.
            A casa era isolada, no meio de uma propriedade no meio do nada. Da porta se via algumas vacas pastando, galinhas soltas a correr no terreiro. Eu não fazia ideia de que aquilo ainda existisse no meio da cidade, uma verdadeira granja em plena região metropolitana.
            Joguei uns pães velhos para as galinhas e coloquei água na tina das vacas.
            Quando retornei para a casa ouvi a voz dela. Não havia mais choro, mas sim um pesar, uma fraqueza, até mesmo um conformismo na sua voz. Também, depois de três dias presa, a pão e água (literalmente), não tem aquele que teria forças para lutar. Sobre a mesa, havia pão e uma garrafa de água, alguns copos plásticos. Essa era a alimentação dela, minhas ordens foram específicas. Na geladeira havia queijo, mortadela, uma garrafa de refrigerante de uma marca que eu nunca ouvira falar. Preparei um sanduíche reforçado, caprichado, e pus na bandeja junto com um copo de refrigerante. Destranquei a porta do quarto onde ela estava. Não havia mais luz, a iluminação que entrava era da sala onde eu estava. No canto do pequeno quarto, ficava uma cama de solteiro, logo de frente para a porta. Não havia janela e o calor ali dentro era ainda maior. Ela estava encolhida no canto da cama. Aproximei-me.
            “Você está com fome?”
            “Sim, estou… estou com muita fome”, disse ela, após um breve soluço. Era a primeira vez que eu falava com ela. A escuridão não permitia que ela me visse, mas eu pude ver a corrente presa ao seu pé. O sangue coagulado, já estava escuro.
            “Eu preparei algo pra você… um sanduíche…” Não sabia o que dizer. Pensei em dizer algo engraçado tipo – não é nenhum McDonalds, mas dá pro gasto – mas vi que não teria a menor graça. “Eu trouxe refrigerante também!” E pus a bandeja sobre a cama, ao alcance dela.
            “Você poderia afrouxar isso aqui? Está doendo muito.” Ela indicava a corrente presa no pé direito dela; eu olhei para o cadeado. Mas eu não tinha a chave.
            “Se eu pudesse… Não estou com a chave aqui.”
            Afastei-me um pouco, pé ante pé, em direção à porta. Ainda pude ouvi-la dizer:
            “Estou com medo…”, e o silêncio se fez em seguida.

            A noite foi de mais choro. Não era como no começo, choro de desespero. Agora o choro era doído, soluços baixos que me deixavam ainda mais aflito. Como eu fui parar ali, onde estava com a cabeça. Adormeci me lembrando dos fatos. Nada justificava aquela violência.

            O dia amanheceu com Jorge, o pressuposto líder, dando tapas no meu rosto. Acordei assustado, com o coração acelerado.
            “Que houve?”
            “Nada não. Como foi o dia ontem? Ela reclamou mais? Continuou gritando?”
            “Não. Ela se comportou bem, acho que se conformou com a situação.”
            “Melhor assim. Não vou tolerar patricinha dando histérico aqui.”
            “Veja o lado dela…”
            “Veja o lado dela um caralho!” Berrou o outro, que era o mais velho, mais velho de todos nós, não conhecia o seu nome, só que o chamavam de Zóio. Vale ressaltar que não vi nenhum motivo nele para esse apelido. Mas ele assustava, ele me assustava. “Quero que essa puta se foda de chorar!”
            “Calma, Zóio, não carece perder a paciência aqui não. A família dela já disse que ia colaborar, não disse? Vamos esperar”, disse o outro numa tranquilidade assustadora.
            “Vocês falaram com eles?”, perguntei.
            “Claro, né, porra! Você acha que a garota veio passar férias aqui?”
            “Até quando?”
            “Até quando o quê?” perguntou Jorge.
            “Até quando ela vai ficar aqui? Quando vão dar o dinheiro pra soltar ela?”
            “Bem, disseram que até o final da semana eles conseguem e entregam. Para o bem dela, espero que consigam mesmo.”
            Os dois ainda ficaram falando alguma coisa, quando o tal do Zóio resolveu ir até o quanto onde ela ficava. Tentei perguntar o que ele ia fazer lá. Mas Jorge me segurou.
            “Pro seu próprio bem, rapá, é melhor você começar a manter a sua boca fechada.”
            O outro colocou um capuz na cabeça e entrou no quarto. Ouvi o choro dela recomeçar, agora um choro alto, desesperado. Depois um som de uma tapa e o choro fora abafado.
            “Que é que ele vai fazer, Jorge? Cara, pra que isso? Ela já está sofrendo pra caralho, meu!” Ainda tentei correr para o interior do quarto, mas fui contido.
            “E é melhor ela não fazer docinho, não, viu? Zóio não é muito paciente não.”
            Alguns minutos se sucederam até que ele voltasse, só que agora furioso. Tirou o capuz e jogou sobre a mesa. Passou como um foguete em direção à porta, à saída finalmente.
            “É bom que os pais dela paguem tudinho. Mas eu devolvo essa puta toda furada, ah isso eu devolvo!” Disse ele enquanto passava por mim e pelo seu comparsa.
            “É bom você controlar ele, Jorge. Esse tipo de atitude é que fazem as coisas darem em merda.”
            “Fica sossegado. Tudo vai terminar como tiver que terminar. Olha, eu trouxe mais pão, queijo e mortadela pra você aí. Pra ela continua sendo só pão e água, entendeu? Hoje não voltamos mais. Qualquer coisa eu ligo.”
            Ele saiu logo em seguida. Entraram no carro e disparam dali. Fechei o portão e voltei para o interior daquela casa pensando no que eu havia me tornado: capacho de bandido! Mas o que eu sou? Participando de um sequestro, sou tão bandido quanto aqueles dois, não importa como eu fora parar naquela situação. Lembrei-me dela e corri para o quarto. Na ânsia de ajudá-la, não me lembrei de cobrir o rosto e entrei a toda no quarto. Ela me olhou com aqueles olhos penetrantes. Havia alguma luz no interior, telhas deslocadas permitiam a entrada do sol iluminando fracamente o local.
            Ela estava encolhida, no canto da cama, abraçando suas pernas, escondendo o rosto machucado detrás dos joelhos. Estava ferida, os lindos cabelos escuros assanhados. Um filete de sangue escorria de sua boca. A roupa rasgada revelava um seio lindo, delicado. E vi suas pernas arranhadas… Um suspense tomou conta de mim, meu corpo tremeu. Aproximei-me dela, que se recolheu ainda mais tentando se proteger.
            “Calma!”, eu disse, em voz bem baixa. “Não vou fazer mal a você, não vou te machucar.”
            Ela não chorava, não demonstrava qualquer som. Mantinha os olhos fechados, enclausurada em mundo escuro, evitando abri-los para não ver a realidade à sua volta. Aproximei-me ainda mais, ficando a centímetros dela, e afastei alguns fios de seus cabelos de cima de seus olhos. Foi quando eu percebi que ela chorava, apenas desciam lágrimas de seus olhos, encontrando caminhos em sua face, desaguando em seus lábios cerrados. Não sabia o que fazer. Levantei-me, corri para pegar um pano limpo. Voltei, ela estava no mesmo lugar.
            “Me deixe ajudá-la… você está machucada, está sangrando…”, falei. E toquei seu rosto com o pano. Ela continuou arredia à minha ajuda, baixando o rosto. “Por favor”, eu pedi. “Não vou machucar você, eu prometo…”
            “Me deixa ir embora então…”, ela enfim falou, com uma voz suave, trêmula.
            Fiquei em silêncio por quase um minuto. Eu devia imaginar que aquela seria a primeira pergunta ou pedido que ela faria. Mas o que eu poderia fazer? Apenas dizer que se dependesse de mim ela estaria livre, não bastaria. Não dependia de mim, infelizmente. Eu devia uma resposta a ela.
            “Eu não posso… Juro que se dependesse de mim, nada disso estaria acontecendo?”
            Ela parece que ganhou forças naquelas minhas palavras. Sabia que não levaria um tapa, ou que não tentaria violentá-la.
            “Como não? O que você quer dizer com isso? Vocês me tiraram da porta de minha casa? Me bateram, tentaram me estuprar! Como não estaria acontecendo nada?”, gritou, pela primeira vez.
            Me afastei um pouco. Ela agora não mais escondia o rosto atrás dos joelhos, não estava de olhos fechados ou chorando. Ela me encarava, esperando uma resposta. Achei que era momento de abrir o jogo.