segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

As estações - 4ª parte


Inverno


            Caía uma chuva típica do mês de junho, nos trópicos. Eram quatro horas da tarde, mas já era noite no céu. Apesar do que o termômetro poderia indicar, o tempo estava mais quente, úmido. Não se sentia nenhuma brisa. Mas talvez fosse o aglomerado de pessoas, ou mesmo o trânsito intenso dos carros, que àquela hora, em plena sexta-feira, só pensava em ir pra casa curtir o final de semana com suas famílias.
            Eu caminhava entre a multidão, segurando meu guarda-chuva com vigor, pois a chuva caía impiedosa. Uma chuva vertical, de pingos-grossos. Não gostava de dias assim, dias de chuva. Nunca escondi de ninguém minha preferências pelas estações mais ensolaradas, como a primavera, o verão.
            Parei um pouco sob a proteção de uma marquise de lanchonete. Um pouco mais adiante ficava uma faculdade. Olhei para o interior do estabelecimento, estava lotado. Tornava-se refúgio de estudantes, de transeuntes, de pessoas como eu que só queriam se abrigar da chuva. O ambiente, todavia, instigara meu estômago a reclamar a falta de comida. Para sair mais cedo do trabalho, eliminei a etapa do almoço. Até minutos atrás eu não sentia nada, mas naquele momento, só em pensar em comida, só em lembrar que eu não havia almoçado, uma fraqueza tomou conta das minhas pernas, uma zonzeira passou pela cabeça. Já que estava ali, não custava parar uma meia hora para fazer um lanche. Fui ao balcão e pedi um salgado de queijo e um suco de laranja.
            Com a bandeja na mão, procurei um local para me sentar. Corri os olhos por todo o espaço, tudo ocupado. Pouco antes eu tinha visto uma mesa vazia. Agora nada. Andei ziguezagueando nos espaços estreitos, até que vi uma pessoa acenando para mim. Mas não, não podia ser, pois eu não conhecia ninguém por ali. Olhei à minha volta, mas nenhuma das pessoas tinha a atenção daquela menina. Ela riu e apontou o dedo na minha direção, indicando que era eu mesmo. Não tinha nada a perder, caminhei até ela.
            “Oi”, disse ela, toda sorridente. “Senta!”
            Obedeci, meio desconfiado. Não havia como não me encantar com aquele sorriso, com aquela beleza exuberante.
            “Era mesmo comigo que você estava falando?”
            “Oxe! Mas é claro que era com você. Ia ser com mais quem?”
            “Desculpe a indelicadeza, mas eu conheço você e não estou lembrando, é isso?”
            “Aff! Claro que não me conhece, nunca fomos apresentados.” E ela estendeu a mão dizendo seu nome. Retribuí dizendo-lhe o meu. E depois de uns poucos segundos, ela continuou. “Mas eu conheço você!”
            “Como?!”
            “Bem, conhecer de vista, de ver passar.” Não sei o que acontecia comigo, eu não conseguia tirar os olhos dela. Era meio repentino tudo aquilo, estranho até certo ponto. De fato eu fazia sempre aquele caminho para ir ao ponto de ônibus, todo dia. Mas saber que alguém me via, que se lembrava de minha fisionomia, era um pouco demais. Não pela singularidade do fato, muito pela completa incredulidade do mesmo. Era uma garota linda, talvez no começo ainda da faculdade, e eu tinha pelo menos uns bons anos de dianteira, e não era nenhum referência de beleza. Ela disse que me via passar há muito tempo, sempre apressado, sério, sem olhar para os lados. Fazia um curso de economia, porque queria um emprego no serviço público. Eu disse que já havia me formado há um bom tempo, que tinha feito mestrado, que estava começando a trabalhar numa grande empresa da minha área. E ficamos conversando, nos conhecendo.
            “Você é uma pessoa incrível”, eu disse em um determinado momento, aproveitando uma pausa que se abriu entre nós.
            “E incrível por quê? Sou absolutamente normal.”
            “Quem chamaria um completo entranho para se sentar à mesa consigo?”
            “Bem, isso lá é verdade. Mas eu chamaria sim, se esse estranho fosse você.” E ela riu mais um pouco, ajeitando seus cabelos castanhos, quase louros.
            E continuamos a rir e a conversar por um tempo indeterminado. Quando paramos, não por falta de assunto, foi porque ela olhou as horas e viu que era bem tarde.
            “Passamos mais de três horas aqui? Puxa, o tempo voa! Mas também, quando a conversa é boa, o tempo se torna tão irrelevante…”
            “Fico feliz por você dizer isso. Sempre me achei meio sem graça…”
            “Hum… Quer ouvir elogio é, moço?” E ela piscou o olho para mim. “Mas realmente preciso ir, estou na minha hora. Meus pais vão me torrar o juízo por esse atraso.”
            “E vamos nos ver outra vez?” Perguntei, enquanto nos levantávamos.
            “O que você acha?”
            Ela caminhou na minha frente, até a saída da lanchonete. A chuva havia passado. Observei-a por inteiro, finalmente. Beleza singular! Ao descer o batente, sua blusa levantou um pouco na parte das costas.
            “Você tem uma tatuagem?”
            Ela parou, virou-se para mim, sorriu e balançou a cabeça afirmativamente. “São flores”, ela sussurrou.
            E ela partiu, na direção oposta. Uma onda de felicidade tomou conta de mim. Algo me dizia que eu iria reencontrá-la muitas outras vezes.

*    *    *

            Como deixá-la ir? Era impossível não pedir que ficasse comigo o resto de nossa eternidade. Como implorar pela sua companhia, sem me mostrar frágil, dependente? Desde que eu chegara àquele lugar, as dúvidas iniciais, as inconstâncias do tempo… ela se tornara razão de meu ser. E ao vê-la banhar-se nas águas do mar, sorridente, sabia que meu destino e o dela estavam ligados de algum modo. Eu só me não lembrava se era pelo antes ou pelo depois. Ela devia ter feito parte de minha vida, ou iria fazer. Deitei-me sobre a areia, olhando o sol que ia alto. Fechei os olhos. E se eu tivesse que escolher? E se eu tivesse que optar entre estar morto e estar sonhando? Parecia não haver dúvida. Eu queria passar o resto de minha existência com ela.
            Acordei com pingos de água no meu rosto. Abri os olhos e ela me beijou. Um beijo terno, um beijo de amor.
            “Amor, está na hora…”
            Indaguei, curioso.
            “Na hora de quê?”
            “Está na hora de a gente acordar…”
            “Era um sonho então?”, perguntei, com o coração apertado.
            “Um sonho que a gente construiu juntos.”
            “Mas foi tão pouco tempo, temos tanto ainda pra viver… Não quero que você me deixe…”
            “Mas não sou eu que vou te deixar… é você!”
            Sentamo-nos lado a lado, como da primeira vez que conversamos.
            “Engraçado, sabe, a gente nunca sabe o que pode acontecer com a gente ao virar uma esquina, ou mesmo ao descer uma colina.”
            “Essa é a beleza da vida.”
            “Por que você esperou para falar comigo aqui? Um completo estranho…”
            “Você tem razão… eu não falaria com um completo estranho, a não ser que esse estranho fosse você…”
            De repente tudo ficou claro na minha mente, uma tempestade de lembranças me inundou por completo. Tudo se formava, se montava diante dos meus olhos. Ela não era uma estranha, nunca foi. Eu a conhecia! Eu a conheci muito anos atrás. Meu rosto se tornou lívido.
            “Vejo que você lembrou tudo. Que bom! Às vezes a gente precisa de coisas novas para enxergar aquilo que é antigo.”
            “Eu nunca deixei de amar você…” Eu disse, subitamente.
            “E você acha que eu deixei?”
            “Você mudou tanto…”
            “São as escolhas que fazemos que nos mudam. Mas quem sabe a vida não nos dá uma chance de voltarmos a ser o que éramos?”
            “E você acha que é possível?”
            “Tudo nesta vida é possível, basta a gente querer… Mas, agora está na hora…”
            “Então tudo não passou de um sonho?”
            “Você tem o poder de escolher…” E ela me beijou suavemente nos lábios. Seu perfume me inebriou. E o sol desapareceu diante dos meus olhos.

*    *    *

            Consegui abrir os olhos. Minha cabeça doía, como se uma espada a traspassasse. Lágrimas brotavam dos meus olhos, a respiração difícil, entrecortada. Virei-me de lado. Pude ainda contemplá-la dormindo, pela luz do luar. Sua tatuagem, de flores vermelhas, parecia ficar     ainda mais bela sob aquela iluminação tão especial. Uma nova pontada me fez dar outro grito e ela despertou assustada. Olhou-me com aquele jeito doce e meigo, mas ao perceber que eu não estava bem, ficou apavorada.
            “Meu amor, que aconteceu? Que você está sentindo? Vou ligar para a emergência!”
            Tentei, mas não consegui falar, a dor era insuportável.
            Ela começou a chorar e a me pedir perdão. Eu tentei sorrir, acariciei seus cabelos. Mesmo com a dor, eu pensei como a felicidade era algo utópico. Na vida lutamos dia a dia para se chegar até ela. Dias de alegria, dias de tristeza. Quanto vale a pena esse embate diário. Às vezes o corpo cansa, às vezes a própria vida cansa.
            Ela ficou junto de mim, segurando minha mão. Tentei falar.
            “Perdão…”
            “Perdão pelo quê? Não tem o que perdoar…”
            “Perdão por não ter feito você mais feliz…”
            “Bobo…” ela sorriu, com lágrimas nos olhos. “Você me fez a mulher mais feliz do mundo!”
            Acariciei seu rosto. Ela me beijou suavemente nos lábios. Era ela novamente, a mesma garota que um dia conheci numa lanchonete. A angústia que há muito eu vinha sentindo sumiu. Eu tinha meu grande amor de volta. Sorri. Seu perfume me inebriou. E a vida desapareceu diante dos meus olhos.

            Há estações e estações. A primavera e o verão podem representar o nascimento, a vida. O outono e o inverno, por sua vez, o fim de um ciclo. A vida é assim mesmo, vida e morte, num ciclo interminável. Um brigando com o outro, sem vencedores.