sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Um amor entre livros (mais um conto)


Um Amor entre Livros


            Naquele dia acordei um pouco mais cedo que o habitual. Era uma sexta-feira de outubro, a primeira sexta do mês, para ser mais preciso. Pela janela adentravam uns poucos raios de sol e eu, ainda me espreguiçando, pude contemplar um balé difuso de partículas de poeiras suspensas, iluminadas, apenas seguindo o balanço do ar. Levantei e olheis as horas – cinco e meia. Definitivamente, acordara muito mais cedo que o necessário.
            Após um banho demorado, com água fria para despertar melhor e fazer o sangue circular, tomei um café um pouco mais caprichado que o normal. Dirigi-me ao sofá e peguei o jornal do dia anterior. Não sei o porquê de ainda manter aquela assinatura, já que temos a internet com todas as informações necessárias e ainda as inúteis. Liguei o rádio para ouvir um pouco de música, tocava Engenheiros do Hawaii, a música Refrão de um Bolero. Deixei-me levar pela música um pouco. Acho que acabei cochilando por uns poucos minutos. Terminei de me arrumar e saí para o trabalho.
            Às sete horas da manhã todo dia podia me deliciar com o cada vez mais crescente engarrafamento das ruas da cidade do Recife. Eu trabalhava no centro, em um pequeno escritório de contabilidade. O pior é que eu já me havia acostumado com aquela massacrante rotina, e nada naquele dia prometia ser diferente, infelizmente. A rotina do trabalho era cansativa, ou talvez a minha vida fosse cansativa, sem uma perspectiva definida, esperando um milagre talvez, uma mudança do meu destino. Vez em quando, entre contas e planilhas, eu me via pensando em coisas sem futuro, numa filosofia barata da vida. Mas aquela era a minha vida, uma linha contínua na horizontal… E eu contava as horas para que o dia passasse e o dia seguinte chegasse.
            Na hora do almoço todos íamos ao Paço Alfândega, um dos mais belos shopping centers que tínhamos na cidade, principalmente pela sua estrutura não convencional, inspirada em modelo secular, da época dos fundadores da cidade. Uma mistura perfeita entre o novo e o antigo. E a cada dia eu sempre encontrava motivos para admirar sua arquitetura, uma verdadeira obra de arte.
            Ao término do almoço, antes de voltar ao escritório, sempre dava uma rápida caminhada pelas margens do rio Capibaribe. Gostava de ver o movimento dos carros, a água escura do rio, sentir a brisa que soprava naquelas horas iniciais da tarde. O curioso é que no tempo em que eu estava naquele trabalho, nunca tive a curiosidade de entrar naquela livraria que ficava defronte ao Paço – a Livraria Cultura. Só que a tarde daquela sexta-feira de outubro seria diferente. Quando saí do shopping, parei para olhar as vitrines (o máximo que fazia). Quase que de repente, num arrebatamento mágico, deparei-me com uma mulher a poucos metros de mim. Olhei bem discretamente enquanto ela percorria os olhos pela vitrine. Era bela, incrivelmente bela. Estava hipnotizado e quase não a percebi entrando na livraria. O que eu iria fazer? Meu coração disparou e comecei a suar, minhas mãos ficaram úmidas, trêmulas. Como era possível, apenas um olhar e aquele turbilhão de emoções tomando conta de mim. Inédito! Ao mesmo tempo, inexplicável! Teria duas opções – seguir a minha vida, dirigindo-me às margens do rio, ou entrar naquele novo universo de novas possibilidades. Não era simplesmente o fato de entrar ou não na livraria, mas romper conceitos e convenções idiotas impostas por mim mesmo. Da vidraça eu ainda podia vê-la, misturando-se na pequena multidão.
            Simplesmente entrei, sem pensar, sem ponderar, simplesmente entrei. A brisa agradável do ar-condicionado acalmou um pouco minha ansiedade. Procurei, um tanto atordoado com tantas pessoas, livros, com todo aquele universo, e achei-a a alguns metros parada diante de uma estante. A passos lentos, eu tentei me aproximar dela. Ela se moveu até outra estante, retirou um livro da prateleira e começou a folheá-lo. Dei a volta e me posicionei próximo. Era a seção de literatura nacional. Como quem não queria nada, comecei a abrir livros a esmo, folheando-os como se tivessem algum interesse para mim. Aproveitei para observá-la com o canto dos olhos. Foi então que me encantei ainda mais com a sua figura. Ela definitivamente era bela, linda em toda sua plenitude. Tentando não chamar atenção observei sua pele alva combinando com sua blusa preta, a calça jeans e as jóias que usava, pulseiras, anéis, brincos, um colar com uma bonequinha pendurada. Tinha também os cabelos negros lisos e longos, colocados delicadamente, ocasionalmente, sobre apenas um ombro, realçando ainda mais sua beleza. Mas não consegui ver todo seu rosto. De repente ela voltou com o livro para a prateleira e seguiu adiante. Guardei também o meu (cujo título não me recordo). Acompanhei-a com os olhos e vi quando subiu ao primeiro andar e ficou vendo CDs. Também o fiz. Enquanto ela ficava observando as faixas de alguns discos, admirei-a por completo. Naquele momento, estávamos frente a frente, eu na esperança de um olhar, ela concentrada nos encartes. Tinha altura mediana, com linhas bem definidas. Os olhos eram harmoniosos, ressaltados pela maquiagem suave, e tinham uma vivacidade surpreendente. Havia um quê de sedutor naqueles olhos, e finalmente eles se encontraram com os meus, ou talvez tenha sido a minha vontade criando ilusões de ótica. Ainda assim, eles me cativaram no primeiro momento. Olhei-a inteira e vi que tinha um corpo perfeito, discretamente sensual.
            Em um determinado momento ouvi sua voz, quando perguntava alguma coisa a um vendedor. Ela tinha um sotaque diferente, peculiar, um tanto musical. Logo deduzi que devia ser de outra cidade, outro estado talvez. Sorriu e se eu achava que nada mais podia me encantar nela, o sorriso foi o ápice. Soltou uma frase ao vendedor: “Fala sério”, sorriu mais uma vez e colocou de volta o CD na prateleira. Alguns minutos depois ela foi embora. Não tive mais coragem de segui-la, acompanhei-a de longe, com o coração a mil. Naquele momento eu me dei conta da mudança estava para acontecer na minha vida.
            Eu esperei ainda alguns minutos circulando pela livraria, caminhando entre discos e livros. Tomei um café, mas a imagem daquela mulher, que mais parecia uma princesa, uma linda princesa entre livros, não me saía da mente. Por que não falei com ela? Talvez ela voltasse um dia. Sim, definitivamente ela voltaria. E daquele tarde em diante eu retornaria àquela livraria todas as tardes, até encontrá-la, até ouvir outra vez o som de sua voz. E dessa vez eu não a deixaria escapar. Não sei como explicar, mas uma certeza tomava conta de mim. Encontraríamo-nos mais uma vez, talvez muitas, talvez por toda uma vida. E assim, com um sorriso rosto e uma certeza na alma, regressei à minha rotina diária, alterada pelo surgimento de um amor entre livros.


Um comentário:

Anônimo disse...

Amei o conto, atmosfera envolvente, encantadora. "Fala sério", muito bom.