domingo, 28 de novembro de 2010

MEMÓRIAS SUJAS (parte final)



Memórias Sujas

  ( . . . )



            Era noite da sexta-feira. Gustavo estava deitado na cama, esperando Débora, que havia ido banhar-se. Ele era puro êxtase, vivendo um momento singular em sua vida. Apareceu sua musa, nua, na porta do quarto. Ele a chamou com os olhos e foi prontamente atendido. Ela deitou-se ao seu lado, fitando-o por alguns segundos. Depois, ele deitou a cabeça em seu colo e sentiu a pele ainda fria.
            — Meu querido — falou ela, com a voz ao mesmo tempo doce e libidinosa — você ainda não me disse onde trabalhava.
            — Não disse? — perguntou ele, questionando a afirmação dela.
            — Na verdade, você ainda não me falou nada de sua vida, apenas o seu nome… Guilherme.
            — É que falo pouco sobre mim…
            — Você é o meu Salvador, gostaria de saber mais ao seu respeito. O que faz?
            — Sou engenheiro, desempregado no momento.
            — Em quê?
            — Ah… mecânico, sou engenheiro mecânico. Mas já tenho um trabalho em vista.
            Ela sorriu.
            — Às vezes parece que estou sonhando. Nunca pensei que trairia o meu marido… É engraçado como as coisas acontecem de repente…
            Gustavo não olhava para ela, tinha os olhos fixos no vazio. Ela continuou falando como se ele prestasse atenção a tudo; mas não, dele ela ouvia apenas monossílabos. De repente, ela disse algo que o trouxe de volta à realidade, como se tivesse entendido tudo que ela falara até então.
            — Devem estar preocupados comigo, amanhã ligarei para minha mãe. Confio nela.
            Gustavo a olhou e sorriu. No tempo que estiveram juntos, não haviam conversado mais que duas frases.
            — Vou até a cozinha, meu amor, quer algo?
            Débora sorriu.
            — Não… ah, traz um pouco d’água.
            Foi a vez de ele sorrir. Antes de desaparecer, ela o chamou:
            — Guilherme — ele se virou, ela continuou: — Eu te amo!
            Gustavo saiu do quarto em direção à cozinha. Abriu a geladeira e tirou a garrafa com água. Pegou uma bandeja de metal e sobre ela colocou um copo e a garrafa. Antes de sair, voltou e, na gaveta, pegou uma faca, que também foi acomodada na bandeja. Seguiu para o quarto. Débora estava deitada, nua, de costas para ele. Admirou mais um pouco sua beleza chispante, envolvente. Ela o percebeu e virou-se para ele. Recebeu o copo e a garrafa e retribuiu com o seu sorriso mais alegre e agradecido. Passou por ela, e enquanto pousava, por trás dela, a bandeja sobre a cama, pegou a faca sem que ela percebesse e a enterrou em suas costas. Ela caiu, largando copo e garrafa, num urro surdo de dor, depois um grito aterrador ecoou. Débora arrastou-se no chão por alguns metros, quase sem força e com metade do corpo paralisado. Virou-se para o agressor, suas poucas lágrimas perguntavam por que. Elas não obtiveram resposta. Gustavo estava parado, taciturno, como se nada demais tivesse feito. Seu semblante era assustadoramente tranquilo. Ela tentou gritar, mas nem um sussurro conseguia mais soltar, seu pulmão havia sido perfurado e enchia-se de sangue, que se precipitava já pela boca. Ele caminhou na direção dela, abaixou-se e, sem piscar uma única vez, esfaqueou-a até que estive morta, o que não demorou muito. Sentou-se ao lado do corpo, o qual esfriava lentamente, e assim ficou até a manha do dia seguinte.
            O dia amanhecera nublado, sombrio, mas não choveu. Gustavo trabalhou o dia inteiro. Primeiro carregou o corpo até a cozinha, arranjou panelas grandes e o picou todo, acomodando as carnes e vísceras, sem os ossos nas panelas. Os ossos, ele os serrou todos, guardando em sacos de lixo; o mesmo fora feito com a pele e a cabeça; tudo bem embalado, para que ninguém pudesse identificar. Essa tarefa tomou-lhe a manhã inteira; à tarde limpou o sangue que se espalhava pelos cômodos, cozinha, corredor e quarto. À noite preparou uma refeição leve, depois, recolheu-se ao quarto limpo e dormiu.

            Compro o jornal. Preciso procurar emprego, amanhã já é outubro. Como o tempo passa rápido. Devo ter problemas de memória, talvez algum tipo de amnésia, é de suma importância consultar um médico, um especialista. Como posso esquecer o que fiz durante mais de uma semana? Preciso realmente ir ao médico, senão nunca conseguirei manter-me num emprego. Ah! aqui tem um: “precisa-se de técnico em informática”. Pronto, amanhã mesmo vou à luta. Se conseguir o trabalho, será o quinto apenas nesse ano. Não posso me descuidar, não dessa vez.


FIM

sábado, 27 de novembro de 2010

MEMÓRIAS SUJAS (parte 3)

Atenção! este trecho contém partes impróprias para menores de 18 anos!



Memórias Sujas

  ( . . . )



            Ela apresentou-se quando estavam no interior do ônibus, a caminho do apartamento dele. Seu nome era Débora e o sujeito que ficara desacordado era o seu marido.
            — Desculpe o meu atrevimento — disse ele. — Ter invadido sua casa, sua vida…
            — Você me salvou! — respondeu ela, entre um soluço e outro. — Como me achou?
            — Eu estava no outro ônibus, antes…
            — Eu me lembro de você.
            — Pensei que não me tinha notado? Fiquei tão impressionado com sua beleza — ela corou neste momento — com o seu semblante triste, intrigou-me. Primeiro eu me perguntei: o que pode fazer tão bela criatura chorar? Quando você desceu, algo me fez ir junto.
            — Foi a Providência Divina! Deus o colocou no meu caminho.
            — É — respondeu ele meio sem jeito.
            A viagem não durou muito tempo. Em poucos minutos estavam entrando no apartamento. Gustavo trancou a porta e acendeu as luzes. Indicou o sofá para ela. Estava calma, não chorava mais.
            — Quer tomar algo?
            — Uma água.
            Ele trouxe um copo d’água e sentou-se ao seu lado. Criaram logo uma afinidade. Ela disse que havia descoberto a traição do marido, a segunda em menos de cinco anos de casamento. Falou ainda da tortura que era viver naquela casa, com a sogra paralítica, que a maltratava constantemente e a intrigava com o marido. Havia-se decidido a terminar o relacionamento, que não aguentava mais os maus-tratos daqueles dois monstros.
            — Minha vida é um inferno! — concluiu ela.
            — Como pode uma moça tão bonita ter-se ligado a gente tão perversa, e como pode já ter sofrido tanto na vida.
            Ela corou, e sorriu pela primeira vez. Gustavo chegou mais perto e com os dedos enxugou as derradeiras lágrimas de sua vida, assim ele prometeu, o que a fez rir ainda mais. Terminou por abraçá-la, que se aninhou confortavelmente em seus braços. Dormiram.
            Passava da meia-noite quando Gustavo despertou. Procurou Débora e não a viu. Levantou-se e escutou algo no banheiro. Aproximou-se lentamente da porta e ouviu o chuveiro ligado. Girou, grau a grau, a maçaneta e abriu a porta com cuidado. Ela se banhava, pela cortina viu sua silhueta. De repente, o chuveiro foi fechado e a cortina aberta. Ele pode contemplar cada detalhe da imagem que se apresentou à sua frente. O corpo esguio, molhado, tentador. Ela o olhava sem reação, atônita. Ele se aproximou um pouco mais. Ela respirava ofegante e seus seios arfavam, acompanhavam sua respiração. Os cabelos molhados, negros, colados na pele alva, ardente. Contemplou-a com desvelo, suas curvas generosas, suas carnes abrasadoras. Mirou seu sexo com desejo e cuidado. Ela sentia seus olhos lhe percorrendo o corpo, centímetro a centímetro, e aquilo a estava deixando excitada. Ele se aproximava e ela respirava ainda mais ofegante, e cada gota d’água em seu corpo parecia evaporar, deixando-a pronta para ele. Entreabriu a boca e recebeu dele um beijo ardente que a encheu de gozo e paixão. Despiu-se inteiramente das roupas que lhe atrapalhavam os movimentos, sentiu ainda o corpo dela molhado, não mais pelo banho, mas pelo prazer que nela ele provocava. Abraçou-a e encostou-a na parede. Beijou-lhe os seios, ambos, com solicitude, voracidade, amor. Deslizou a língua em seu amplo e jovial corpo, que ardia, e sentiu todos os seus sabores, as delícias da mulher. Subiu e mordiscou-lhe os bicos róseos, enquanto tinha os cabelos acariciados por ela que fremia de prazer. Não mais aguentando, ela o ergueu e tomou o seu membro, introduzindo em seu sexo lúbrico. Ele sentiu seu calor vaginal e urrou numa mistura de ânsia e prazer. Principiaram umas longas séries de gemidos e pequenos gritos lascivos. Ela cruzou as pernas nele, enquanto a segurava pelas volumosas e firmes nádegas. O movimento frenético fê-los gozar logo, tendo ele despejado seu sêmen no interior dela. Ela o beijou com carinho e ternura. Tomaram um longo banho juntos.
            Era alta madrugada quando se deitaram na cama. Estavam sem sono. Passaram o resto da noite e dos três dias seguintes trancados no apartamento, alimentando-se de sexo. Fizeram de tudo, concebível e inconcebível; percorreram cada canto e cômodo do apartamento; testaram e inventaram posições; descansavam apenas quando os corpos estavam exauridos de forças, extasiados pelo gozo.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

MEMÓRIAS SUJAS (parte 2)

Sem mais delongas, porque a segunda parte é mui longa...




Memórias Sujas

  ( . . . )




            O sol brilha com intensidade naquela manhã de terça-feira, em pleno mês de setembro. O sol entra com liberdade entre as frestas da persiana da janela do quarto 502, no bairro da Boa Vista. Vê-se, dali mesmo, outros prédios e as copas das muitas árvores circundantes, eram mais no passado.
            O sol desenhava listras no corpo do homem que ainda dormia, era um efeito até certo ponto engraçado, e pela posição do homem, um olho estava claro, iluminado, e o outro não, escurecido. Gustavo não suportou por muito tempo aquela claridade em apenas um de seus olhos e despertou de seu sono pouco recompensador. Fora dormir tarde mais uma vez, mexendo no computador.
            Levantou-se e dirigiu-se ao banheiro, e após uma longa mijada, escovou os dentes.
            — Puta que o pariu! — bradou, em baixo volume, ao tomar o relógio na mesa de cabeceira, à direita da cama. — Atrasado de novo!
            Correu o apartamento inteiro, tudo em ordem. Tomou um pouco de leite diretamente da caixa e foi tomar um banho rápido. Em poucos minutos estava passando pela portaria, cruzando a avenida e dirigindo-se ao ponto de ônibus. A viagem durava pouco mais de meia hora, e nesse período, em pé ou sentado, sua cabeça ficava vazia.
            Trabalhava numa repartição pública, mas não era funcionário. Fora contratado como prestador de serviços, no caso, para informatizar toda a seção, dando cursos de internet e rede. Já fez metade do trabalho, mas caíra nas graças do chefe e ficaria trabalhando lá, depois de encerrado o contrato. Sempre era bom ter um técnico em informática do seu gabarito.
            Gustavo havia completado 30 anos há pouco mais de mês. Não tinha parente vivendo próximo, os pais moravam no interior de Pernambuco, enquanto que os irmãos moravam no sul. Há quase dez anos vivia sozinho.
            O tempo corria sossegado, a viagem fora tranquila como todos os dias. Do ponto onde descera até o local de trabalho eram poucas quadras; subiu os nove andares do velho prédio e enfim adentrou no andar onde ficava a seção onde trabalhava. Havia muita gente àquela hora, pessoas acostumadas ao barulho das teclas chocando-se contra o papel, ritmado e frenético, estavam perdidas diante das telas dos microcomputadores. Dirigiu-se à sua mesa. No caminho, fora interceptado por um homem baixo, de óculos redondos e armação de metal descascado, pouco calvo e um bigode amplo (ridículo na opinião de Gustavo) que lhe escondia o lábio superior.
            — Gustavo — chamou ele, com a voz grave. — Isso são horas? É o segundo dia!
            — Calma, seu Gonçalves…
            — Como posso ter calma? — disse ele, com a voz um pouco rouca, irritante. — Venha até a minha sala.
            Os dois caminharam sob poucos olhares curiosos. Entraram numa sala pequena. O chefe fechou a porta e acendeu um cigarro. Gustavo sentou-se.
            — Desculpe, chefe.
            — Não me chame de chefe, rapaz, sabe que não gosto.
            — Qual é!
            — Tenha modos!
            O velho sentou-se do outro lado da mesa e encarou-o firmemente. Tornou a falar:
            — Gustavo… Você é um excelente profissional. Sabe disso, já lhe disse uma porção de vezes. Disse até que segurarei você aqui após o encerramento de seu contrato, não foi? E você sabe muito bem que um trabalho seguro está difícil nos dia de hoje, não sabe?
            O outro assentiu com a cabeça. Seus olhos continuaram fitando o patrão, mas seus pensamentos voaram longe. Era sempre assim, quando alguém começava a falar compulsivamente, sua atenção minguava, desaparecia. Aos poucos os olhos ganhavam vida e voltavam a mexer-se. O patrão, que circulava pela saleta, tornou a sentar-se. Concluiu:
            — Tenha juízo, rapaz. Agora pode ir.
            Gustavo se levantou, sorriu e saiu. Sentou-se em sua mesa, ligou o computador e pôs-se a trabalhar.
            O dia passou logo. Dizem que quando se ocupa a mente com assuntos diversos, as horas correm, e nada melhor para isso ocorrer que o trabalho. Da janela ouvia-se o barulho da rua e via-se o céu, e as pessoas seguindo suas vidas incólumes.
            Gustavo desceu com colegas. Era noite, sem nuvens, sem brisa. Andou passivamente até o ponto de ônibus, carregando sua pasta. Havia poucas pessoas no local, e quando veio a sua condução, subiu só. Passava das sete e meia. O ônibus não estava cheio, mas havia apenas um lugar disponível. No outro assento encontrava-se uma mulher. Gustavo olhou-a brevemente (enquanto se sentava), não pôde ver seu rosto, ela estava com a atenção para a rua. Sentou-se enfim, sem dar maiores importâncias.
            Após alguns minutos de viagem, com o canto dos olhos, olhou a moça. Discretamente virou o rosto, mas não conseguiu vê-la, apenas um pouco de seu perfil. Era bela! Parecia não ser muito alta, tinha a pele alva, os cabelos negros e lisos, presos de tal forma que se podia ver sua nuca e algumas poucas sardas. Distinguiu ainda os lábios rubros e encorpados; numa rápida avaliação daria vinte e cinco anos, talvez pouco mais, talvez pouco menos. A curiosidade de Gustavo floresceu, não pela beleza singular e expressiva da misteriosa mulher, mas pelas lágrimas que ele descobriu em seus olhos. Sim, ela chorava copiosamente, mas sem maiores alardes, por isso tinha o rosto virado para fora, nas mãos um lenço rosa amarrotado era utilizado para secar-lhe o rosto de vez em quando. Aquilo o comoveu, fazendo com que ele deixasse de contemplar o resto de seu virtuoso corpo, as pernas alvas e torneadas, e principalmente, o decote de sua blusa, generosamente aberto, deixando à mostra seu seio direito, escondido pelo sutiã.
            Seus pensamentos se esvaíram completamente, não conseguia nem parar de olhá-la. Ela, em momento algum, o percebeu. Ele não a tirava do pensamento.
            Poucas paradas antes da sua, a soturna moça levantou-se, pediu licença e dirigiu-se à frente do ônibus. Naquela fração de segundo, Gustavo contemplou inteiramente sua beleza entristecida, seus olhos se cruzaram com a velocidade de dois raios de luz, todavia, pelo menos para ele, foi o tempo do infinito. Ela o fitou e talvez lhe tenha rogado ajuda (assim interpretou). Tanto que, após ela descer, e o ônibus já se ter deslocado um pouco, ele levantou-se e precipitou-se a gritar para que parasse o veículo.
            Ela andava ligeiro, ele a seguia a certa distância. A moça nem sequer desconfiava da presença dele, estava tão aturdida em suas dores que, se um raio lhe caísse ao lado, nem assim perceberia. Gustavo tinha a respiração forte, ofegante, suava deveras, o coração acelerado. Acompanhava-a sobre os mesmos passos, a custo, vencendo seus medos. Entrou com ela numa rua estreita, escura, mais ainda com os arbustos cobrindo todo o percurso, impedindo que a iluminação artificial cumprisse seu papel. A rua era estreita e comprida, com o calçamento irregular. Não precisava se esconder, ela nem olhava para trás, ele era um vulto, ela também. Seguia reto, ereta, decidida. Parou defronte a uma casa de muro baixo, de um verde-musgo envelhecido, do lado direito da rua. Entrou. Gustavo aproximou-se, não viu carro na garagem. Aproximou-se o suficiente para ouvir uma discussão. Seu coração palpitava acelerado, o medo que sentia aflorava com o suor, mais ainda quando empurrou o portão entreaberto, que rangeu baixo, e avançou no jardim de grama malcuidada. Pouco se via das lajotas que conduziam até a porta de entrada. Gustavo postou-se embaixo da janela. O barulho no interior da casa continuava, vinha de dentro, talvez do quarto, e ele distinguiu a voz de um casal. Ele levantou a cabeça e olhou rapidamente o interior da casa. Viu móveis velhos, daqueles que existem há pelo menos duas gerações, uma televisão de um modelo bastante antigo, entre diversos outros adereços. De quem seria aquela casa? A moça lhe pareceu nova demais para preferir tantas antiguidades. Olhou para cima e viu um ventilador de teto ligado, girando muito lentamente. À esquerda viu uma cadeira de balanço, muito parecida com a que sua falecida avó um dia tivera. Abaixou-se e tentou pensar com clareza no que estava acontecendo. O suor escorria-lhe ainda pela fronte e com as costas da mão retirou o excesso. Soprava uma brisa fresca, brisa noturna. As mãos tremiam um pouco. Tornou a escutar gritos e objetos quebrando. Levantou-se e não viu nada pela janela, a briga vinha dos fundos da casa. Olhou em volta e viu, no seu lado esquerdo, um portão, acesso para um beco escuro e estreito. Abriu-o, e este rangeu alto, o que fez o coração de Gustavo acelerar ainda mais. Caminhou lentamente, tateando as paredes úmidas. Havia uma luminosidade no fim do beco, os fundos da casa. À medida que andava, a intensidade dos gritos aumentava, e já se entendia o que antes era uma confusão de palavras. Chegou no quintal, estavam os dois na área de serviço. Viu um homem alto, moreno, muito forte, de costas para ele. Do outro lado, sentada num banco, a triste moça que ele seguira. Parecia mais triste ainda, tinha o olhar lúgubre, desconsolado; meteu as mãos no rosto e chorou compulsivamente. Pelo que Gustavo pode compreender, aquele era o marido, e a agredia ferozmente. Vez ou outra ela levantava o rosto e tentava proferir algo inutilmente. Gustavo permaneceu abaixado, encoberto pelas sombras. Subitamente, o nervosismo passou, os suores sustaram. Procurou compreender o que se passava entre o casal. Ele apenas a xingava, despejava ofensas sobre ela. Num certo momento ela despejou:
            — Pare! — gritou com força — Chega! Pare de me tratar como culpada. Você é um monstro! Vil… inescrupuloso… baixo…! O culpado é você, sua amante. Ah, como pude me enganar tanto. Você e sua mãe, os dois, iguaizinhos, são escória…
            — Cale-se, sua cadela! — Gustavo, atônito, ouviu o desferir de um tapa. Cerrou o punho e olhou a cena. A mulher estava caída, cobrindo o rosto, o marido bufava. Ela levantou-se, guerreira:
            — Vou embora, agora — disse ela, serenamente. — Acabou, dessa vez acabou!
            Ele enfureceu-se mais ainda, urrou de ódio, endemoninhado. Gustavo observava atentamente, transtornado, na iminência de interferir. O marido pegou-a pelos braços e a atirou no chão, desferindo um chute violentíssimo na sua barriga. A última coisa que Gustavo ouviu foram os gritos de dor e agonia da pobre, quase desfalecida, mulher. Era a gota d’água. Ele correu para cena, na direção do agressor, que se assustou com o estranho surgindo sobre ele. Não houve uma palavra, Gustavo derrubou-o no chão e socou-o até quase a morte. Quando viu que o marido estava desacordado, mas ainda assim respirava, a moça pegou seu salvador pelo braço:
            — Me ajude! Me tire daqui!
            Ele a olhou seriamente, penetrou no fundo de sua alma e sentiu seu desespero. Puxou-a para si, abraçando-a forte.
            — Vamos, vou-lhe tirar daqui.
            Os dois saíram pelo beco. Ela fugiu do jeito que estava, apenas com a roupa do corpo, sem documentos, sem nada. Naquele momento ela queria apenas livrar-se de seu agressor, seu algoz. Gustavo a carregava, segurando sua mão. Correram pela rua escura e deserta, não falavam, não respiravam.

domingo, 21 de novembro de 2010

MEMÓRIAS SUJAS (parte 1)

O conto que vou começar a postar foi um dos primeiros que fiz em minha curta carreira como escritor. Devo frisar que contos não são meus fortes, porém são mais práticos, e de rápido desenvolvimento e conclusão. Ele foi escrito de forma contínua, e não em partes como o conto "o poeta". Contudo, para facilitar a leiturar (e criar expectativa, claro!), irei dividi-lo em partes. Sem mais delongas, segue...


Memórias Sujas

 

            Sinto-me tão só! O corpo dolorido me faz querer ficar na cama mais umas horas. É impossível! Não me posso dar o luxo de chegar atrasado na repartição pelo terceiro dia consecutivo. Definitivamente não posso mais ficar acordado durante toda a madrugada, preso ao vício da internet.
            Pela janela do quarto vejo que o sol vai alto, provavelmente seriam mais de oito horas. Ah! Levanto-me com a dificuldade de quem levanta uma tonelada. Passa das oito e meia. Mais um dia com menos quatro horas de sono. Desse jeito, vou-me acabar.
            O chuveiro me acorda, a água gélida agride meus ossos e minha carne. Por que todo o meu corpo dói? Mais parece que levei uma surra. A zonzeira continua, os meus reflexos estão lentos, choco-me contra a pia do banheiro e a dor não é maior do que a que eu sentia.
            A cozinha cheira a podre (alguém já viu coisa podre cheirar?) Fede! Não me lembro de ter deixado tudo tão desarrumado; as minhas memórias estão vagas e não faço a mínima questão, agora, de lembrar qualquer coisa. Mas o que faz feder tanto assim? Havia muitas moscas, sobre a pia apenas copos sujos, pratos sujos, facas sujas… Será que fiz algo para jantar e não me lembro? Sobre o fogão, três panelas tampadas. Destampo-as… Ah! O vômito vem-me à boca instantaneamente, mal dá tempo de correr para a pia. Nossa, tem algo podre naquelas panelas. Volto, com uma toalha no rosto, e vejo que esqueci as carnes na panela e elas apodreceram. Acho que me recordo, ontem tratei carne, isso explica as facas sujas e sangue no balcão. Mas estragariam com tão pouco tempo? Arrumo sacos plásticos de lixo e despejo o conteúdo das panelas neles. Amarro-os bem e os coloco junto à porta da cozinha. A próxima providência é desinfetar todo o ambiente. É o jeito, chegarei atrasado mais um dia… Paciência! mas não posso deixar meu apartamento naquele estado.
            Em menos de uma hora a cozinha está limpa novamente, o odor fétido foi-se quase inteiramente, ficando apenas o aroma de lavanda do detergente que utilizei. Percorro os outros cômodos do apartamento, em busca de mais sujeira. A bagunça da casa era natural, resolvo dar um jeito em tudo, e arrumo tudo com uma disposição poucas vezes vista. Deixaria para ir ao trabalho à tarde, após o almoço, e com o espírito pronto para as broncas do chefe.
            Passa um pouco do meio-dia quando desabo no sofá com uma xícara de café na mão. Percebo que a secretária eletrônica está repleta de recados. Mas como, se sempre escuto os recados antes de dormir? Além de tudo, é estranho eu não ter ouvido o telefone tocar durante a noite. Aciono o botão, busco o último recado. A voz era grave, rouca, conhecida, do meu chefe:
            — Gustavo? Sou eu, você deve saber… Escuta aqui, rapaz, é a última vez que ligo para você. A última, entendeu? É definitivo! Passe, quando resolver voltar, no meu escritório… Ah, e tem mais: não me venha com desculpas mirabolantes não, uma semana sem aparecer é justa causa!
            A fita para e fico atônito. Retrocedo e encontro dezenas de recados, todos dando pela minha falta. Falta? Se ontem mesmo fui ao trabalho. Ligo o computador, está lá: quinta-feira, 27 de setembro… Como?! Se ontem foi terça. Será que dormi um dia inteiro? Entro na minha pasta, sei que baixei um programa da internet, ontem de madrugada, e tem registrado a data. Aqui, terça-feira, 18, 00:42. Mas… pensei que tinha sido hoje, de madrugada… Mas como? Semana passada? Minha cabeça não compreende, e começa a doer, algo de estranho, muito estranho…
            Vou ao meu quarto, uma camada de poeira cobre a cômoda, como se a não usasse há dias. Olho em volta e não vejo nada, não enxergo nenhuma explicação, nada que me possa esclarecer as idéias. Tenho a lembrança viva, ontem foi terça, e entrei na internet durante a madrugada, deveria ter registrado quarta. Mas não há registro. Cheguei atrasado na segunda, na terça e hoje… mas hoje é quinta, uma semana depois. Não entendo, agora é meu corpo que dói. Deito-me na cama e fecho os olhos, não posso perder o emprego, é o quarto neste ano. É melhor dormir, talvez relaxando eu consiga encontrar alguma explicação para tudo isto.

domingo, 14 de novembro de 2010

O POETA (parte 5)

V


            Vinícius estava num sono profundo quando o despertador tocou. Levantou-se e olhou o fraque que seria usado naquele dia, sobre a cadeira. Eram seis horas. Espreguiçou-se olhando na direção da escrivaninha. Duas folhas amassadas e outras tantas rabiscadas. Eram os primeiros poemas que escrevera após tantos anos. Olhou-se no espelho do guarda-roupa, os olhos inchados denunciavam o choro da madrugada.
            Duas batidas na porta e a mãe entrou no quarto. Vinícius não entendeu o porquê das lágrimas. Ela chegou junto e o bateu muito forte no rosto, tão forte que o feriu no canto da boca. Atônito e ele simulou uma pergunta e antes que pudesse pronunciá-la, a mãe, com cólera controlada, entregou um papel dobrado e disse:
            — Está morta… enforcada no banheiro com o vestido de noiva…
            Saiu, batendo com ira a porta.
            Desdobrou o papel amassado, caminhou até a escrivaninha, afastou as novíssimas poesias para o canto e pousou o papel para ler o conteúdo, eram poucas linhas, escritas com tinta azul. Tremia assustadoramente.

Meu querido, meu amor,

              Sei o quanto a poesia era importante para você, e você nem desconfiava o quanto você era importante para mim. Uma pena! Só posso dizer isso. Lastimo ter jogado o meu amor fora, lutado em vão contra uma adversária tão poderosa. Assim é a vida. Entreguei-me para vê-lo sorrir, e você sorriu. Que bom! Pena que o sonho tenha durado tão pouco. Disse umas tantas vezes que sem o seu amor e o seu abraço para me confortar, minha vida de nada valia. Pois é isto mesmo, nasci para você, para o seu amor, e mesmo assim, o rejeitou. Não suportarei a dor de viver sem o seu carinho, meu poeta, e parto, deixando-o livre da minha existência, ávida pelo seu sucesso. Espero ir para o céu e de lá vê-lo sofrer umas tantas vezes para que consiga escrever mais e mais poesias. Despeço-me, meu poeta, do mundo e de você,

              A sempre sua
Clara                

            Ao terminar de ler aquelas linhas, gritou com força nos pulmões. Acabou-se tudo, de uma vez por todas, acabou-se.
            Chorou vinte horas seguidas. Escutou muita coisa nesse período, o desespero dos pais que tentavam acalmar os pais de Clara. Tudo se findou tragicamente. Vinícius não era mais Vinícius, e sim um cadáver. E como cadáver não tinha direito à vida. Sentou-se e escreveu uma poesia intitulada Clara, foram trinta páginas escritas em algumas horas. Da janela do quarto a lua parecia estar sorrindo, satisfeita com o desfecho abominável daquela história. Releu o poema e não encontrou erros.
            — É a poesia mais bela que já fiz em toda a minha vida. Obrigado, Clara!
            No mesmo papel que Clara utilizara para deixar sua derradeira mensagem, ele rabiscou algumas palavras. Deixou sobre o poema.
            Deitou-se na cama ora olhando, ora olhando a lua. Pegou um saco plástico e enfiou na cabeça, e morreu sufocado.
            Na escrivaninha, naquele triste papel, portador de mensagens tão infelizes, estava escrito:

“Se um homem não vive sem o ar,
O poeta não consegue viver sem a poesia,
E antes de ser um poeta, eu sou um homem!”

sábado, 13 de novembro de 2010

O POETA (parte 4)


IV


            Batidas na porta do quarto de Vinícius, que passara outra noite em claro. A mãe abrira a porta e anunciara a entrada de Clara. Sua amada entrou, como sempre, linda, e não podia ser de outra forma.
            — Olá, meu amor! — disse-lhe ela, dando um beijo rápido na sua boca.
            — Bom te ver!
            — Como você consegue viver nessa bagunça, Vinícius? Espera um pouco que vou ajudar a arrumar. Tantos papéis espalhados.
            — Não precisa, fique comigo.
            Ela olhou-o com ternura. Viu os olhos fundos dele brilharem e sabia, no íntimo, que ele sabia que a culpa do seu estado lamentável era dela. Sentou-se ao seu lado, na cama.
            — Eu não consigo mais escrever… — desabafou, desabando em lágrimas no colo da namorada. Ela por sua vez, acariciava os cabelos dele. — Eu tento, e nada, nada, nada. É tão insuportável.
            — Eu não consigo entender? Por que tanta importância?
            — Não blasfeme, Clara! Poesia é a minha vida. Escrevo desde os doze anos de idade. Tenho mais de mil guardadas…
            — Meu querido…
            — Eu não posso culpá-la. Ninguém tem noção de como vive um poeta sem a poesia a alimentá-lo. É como colocar um saco plástico na cabeça, morre-se sufocado. Eu vou morrer, Clara.
            Ela o abraçou e sentiu seu corpo frio, quase sem vida.
            — Está a assustar-me, rapaz! Que importância tenho eu na sua vida? Sofre agora pela poesia, não come mais pela poesia… Ora, sinceramente.
            Ele caiu de joelhos e beijou seus pés.
            — Você é o motivo de eu não estar já a sete palmos abaixo da terra…
            — Não diga isso, morreria se fosse perdê-lo. Quero-o tão vivo…
            Abraçaram-se mais uma vez, fortemente unidos. Ela tinha muito medo de perdê-lo.
            Clara era uma mulher de vinte e um anos, linda, incrivelmente linda, que se apaixonara perdidamente pelo professor particular, há quase cinco anos. Ela tinha a doçura nos lábios e os raios do sol nos cabelos. E fizeram-no cair de joelhos diante dela. Amara-a desde as primeiras letras das aulas de reforço de literatura. Ele sempre sonhara ser grande, conhecido através das suas autênticas e inovadoras poesias de amor.
            Escrevia freneticamente, sempre impulsionado por alguma desilusão amorosa. Os amigos o classificavam de poeta do sofrimento. E mostrou-se verdadeira a afirmação. Recheara de poemas relatando aventuras sem sucesso ou paixões platônicas. Talvez por isso Clara tenha-se tornado a primeira namorada. A única que vencera as letras. Pois sim, Vinícius, tomando consciência do seu talento, após os dezesseis anos, e muito mais consciente de que os seus grandes feitos literários eram ocasionados por lágrimas vertidas pelas coleguinhas e amigas, decidiu não se enamorar de nenhuma. Dedicara-se a amar platonicamente, e sofrer como um condenado, debulhando-se em lágrimas e palavras. Os elogios não tardavam. Orgulho dos pais, professores, amigos; vencedor de quase todos os concursos que participara no colégio, admirado pelos professores do seu curso de Letras. Tinha tudo para sagrar-se um Imortal, assim se permitia sonhar. Não tivesse ele se apaixonado pela garota de dezesseis anos que lhe pedira umas aulas de literatura. A força do amor fora tão desproporcional que o fizera escrever quase cinquenta poemas em poucas semanas. Clara era romântica e apaixonara-se imediatamente. Astuta, descobriu logo o poeta e fez exigências por poesias belas que ele fazias aos caminhões. Enfim, escrevera sobre a felicidade, e por isso achava que tinha descoberto o outro lado. Não precisaria mais sofrer para escrever com qualidade. Ganhou outro tanto de concursos municipais e estaduais, bem como a promessa da publicação de um livro. Eles começaram a namorar. Clara, além de muito inteligente, mostrou-se companheira para todas as horas, uma amiga como poucas. Fora, definitivamente, a sorte grande que Vinícius tirara. Aos poucos foi deixando a poesia de lado e dedicava-se exclusivamente aos estudos e à sua amada Clara. Durante anos não escreveu um único verso, e não se importou com isso. Contudo, meses atrás, decidiu escrever um poema para comemorar um aniversário de namoro, e nada. Foi o início do tormento dele.
            Estava em período de férias e Clara sempre passava o dia com o namorado, tentava animá-lo. As conversas eram sempre as mesmas, as angústias, tudo se repetia tediosamente. A cada dia, cada semana, Clara via-se perdendo a batalha, os pais de Vinícius também. O filho se ia esvaindo, amofinando, definhando no seu próprio sofrimento.
            — Não entendo, Vinícius — falou Clara, deitada na cama. O quarto estava todo arrumado, ela o ajeitara, com a ajuda da mãe do namorado há alguns dias, enquanto ele estava fora. — Você se queixa de não conseguir escrever. Não escreve porque é um poeta da dor. Estou certa? — ele balançou a cabeça afirmativamente. — Pois bem, quer dor maior do que esta que lhe consome há meses?
            Ele não tinha pensado por aquele ângulo. Definitivamente, a dor que sentia era muito grande, demasiada esmagadora. Já, inclusive, devia tê-lo matado. E por que, diabos, não conseguia produzia uma única linha?
            — Não posso afirmar nada, meu amor. Mistérios da vida. Eu só sei que é torturante demais. Já não tenho controle dos meus atos…
            — Meu querido, meu amor, me assusta assim. Eu o amo tanto…
            Ela viu-se diante de um ser que não reconhecia mais. Tentara de um tudo para animá-lo e tudo se mostrara ineficaz. Ficara, por um certo instante, a olhá-lo ternamente, e uma idéia soprou-lhe na mente.
            — Quero que sorria — pediu.
            — Há, se o sorriso me quisesse sair…
            — Faça uma força.
            — Por você, eu faria tudo, não é a toa que ainda vivo.
            — Ridículo! — e avançou sobre ele, beijando-o ardentemente. Sussurrou algo em seus ouvidos.
            — O que disse?
            — Faça amor comigo.
            — Mas nunca o quis, que a fez mudar?
            — Eu não me julgava preparada… Agora estou, e lhe quero demais.
            Os dois beijaram-se longamente. Ele a contemplou demoradamente, tantas vezes quis e em todas recusara. Vá entender cabeça de mulher. Talvez seria uma tentativa de fazê-lo feliz, tomara que não. Beijou seu pescoço, enquanto soltava o sutiã. Os peitos pequenos e rijos, com as auréolas rosadas, foram acariciados e beijados com uma doçura própria dos poetas. Sim, estava falando poesia baixinho, só para si. Ficaram nus e fizeram amor o dia inteiro, repetidas vezes. Ela dormiu com ele, não apenas aquela noite, mas todas as que se seguiram. Vinícius voltara a sorrir. Clara sorria todo o tempo. Pensaram em casar-se e marcaram até a data. Dali a um mês. E comunicaram aos pais de ambos, para desgosto dos mesmos. Nada podiam fazer. Durante semanas viviam os dois amantes nus, amando-se desesperadamente.
            — Estou tão feliz! — disse ela, certa ocasião.
            — E eu não sabia o que era felicidade.
            — Esqueceu a poesia?
            — Não, mas você é mais importante.
            Eles sorriram. Mas Vinícius mentiu. Ele não esqueceu, pelo contrário, refletiu um tanto de vezes. E chegado o dia da véspera do casório, procurou Clara.
            Ela abriu a porta e chocou-se ao vê-lo.
            — Meu querido, pensei que só nos veríamos amanhã!
            — Precisamos conversar.
            — O que houve, Vinícius? Sua cara está péssima!
            — Por favor!
            — Está bem. Entre.
            Dirigiram-se ao quarto dela. Ele deparou-se com o vestido de noiva sobre a cama.
            — É lindo!…
            — Mais lindo estará amanhã, em mim.
            Tentou beijá-lo mas Vinícius recusou.
            — Que houve? Está diferente, não dormiu?
            — Não. Eu descobri, Clara, descobri que não posso viver sem poesia.
            Ela deu de ombros.
            — Eu lhe explico… — sentou-se na cadeira, ela na cama. — Não adianta eu tentar mudar, esquecer. É uma faca de dois gumes, não sei o que me fere mais.
            — Continuo sem entender.
            — Calma. Tenho duas pontas da mesma faca no meu coração, e tenho de fazer uma escolha, uma escolha muito difícil: saber qual das pontas poderá me matar… Uma das pontas da faca é a poesia… a outra é você.
            — Eu?!
            — Desde que eu a conheci, nunca mais fui infeliz. Eu, que sempre fugi do amor e da felicidade, por causa da poesia. Você conseguiu me mostra o quão lindo é o amor. E eu a amo tanto quanto a minha vida. Mas a partir daí, acabaram-se as idéias, as dores, acabou-se tudo que tinha importância para mim. O resultado é um homem seco, vazio, completamente oco por dentro. Sou eu!… É por isso que eu tenho de escolher…
            — Entre mim e a poesia?
            — Exatamente! Se ficar com você, não escrevo mais. Adeus a tudo o que me motivou, e morro. Se deixá-la, volto a ser o mesmo Vinícius de sempre. O poeta da dor. Aquele que melhor retrata o sofrimento…
            — Como pôde…
            — Eu sinto muito.
            — Vá para o inferno! — bradou aquela linda menina, vertendo lágrimas de agonia.
            — Me perdoe! Seria pior se eu tentasse me enganar. Eu a amo…
            — Pelo amor de Deus! não fale em amor. Você não sabe o que é o amor, Vinícius. Vá, volte para a sua poesia. Morra de tanto escrever!
            — Clara!…
            — Não torne nunca mais a dirigir-me a palavra, monstro! Desapareça! Agora tem motivos de sobra para escrever. Desgraçou uma pessoa, matou-me! Vá, desapareça!
            Vinícius, sem lágrimas nos olhos, levantou-se da cadeira, deixando-a caída sobre o vestido de noiva. Deixou a casa sob o olhar furioso da ex-futura sogra, que nunca teve gosto por ele mesmo. Caminhou de volta para casa, que ficava a alguns quarteirões.
            Chegou, olhou o pai deitado no sofá, lendo o jornal.
            — Está bem, filho?
            — Sim, meu pai. Agora estou.
            O pai o acompanhou com os olhos até que ele desaparecesse no corredor. Virgínia apareceu na sala.
            — Vinícius chegou?
            — Sim, está muito abatido. Aconteceu algo.
            — Deixa ele. Amanhã ele casa e fica tudo bem. Deve estar refletindo sobre o futuro.
            — O futuro é duvidoso — sorriu Antenor, lembrando-se de uma música. — Quando ele casar, tudo melhora, pelo menos por enquanto.
            — Está na hora do seu remédio. Vou buscá-lo.