quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Há dez anos... - parte 2

            Há dez anos eu lecionava literatura estrangeira e ministrava aulas de composição em uma universidade. Recém-concursado, longe de minha terra natal. Tudo era novo para mim, eu detestava mudanças. Mas era novo para muita gente também, e desafios geralmente ajudam a fazer uma pessoa crescer. E a paisagem daquela região favorecia uma adaptação menos conturbada. Montanhas e vales, um verde que se avistava de longe, de qualquer ponto da cidade, um tapete produzido pela natureza. Poder-se-ia perder horas e horas contemplando o horizonte, apenas escutando o nada, muitas vezes o silêncio absoluto. E a brisa marítima, mesmo estando o mar a alguns quilômetros de distância, podia ser sentida. Nos finais de semana então, era impraticável não pensar em ir à praia. Enfim, um paraíso! E minha saudade assim era amainada.
            A gente espera tudo na vida, mas conhecer o grande o amor da sua vida numa sala de aula não está entre as principais. Quando entrei e vi aquela turma, cheia de olhares curiosos, rapazes e garotas de dezoito e dezenove anos, não me senti velho, como achei que me sentiria. Afinal eu tinha apenas trinta anos. Era a minha primeira turma, eu nunca havia ensinado antes. Após regressar do estrangeiro, com um doutorado em literatura, ser professor acabou por se tornar uma forma de transmitir o conhecimento adquirido, mas, principalmente, de me sustentar. Ainda não havia publicado nada, e esse era o meu maior desejo, minha grande vocação. Com relação aos alunos, certamente eu tinha mais medo que eles. Todos os que já passaram por essa situação diziam que eu nunca poderia demonstrar este temor. Apresentei-me e apresentei o programa da disciplina. E assim o tempo foi passando. Foi quando, quase no fim da aula, os meus olhos encontraram a garota mais bela que um dia puderam enxergar. Ela estava no fim da sala, prestando atenção ao que eu dizia, como se fossem as palavras, frases mais importantes do mundo. Fitei-a como se mais nada existisse ou importasse. Talvez aquele momento não tivesse levado um segundo sequer, mas para mim foi a eternidade, pois não consegui mais tirá-la do meu pensamento nos poucos minutos que restavam da aula. O coração acelerado, o tremor nas mãos, o suor frio, sentimentos que há muito eu não sentia, mas que imediatamente pude identificá-los e justificá-los. E quando enfim, acabou a aula, ela foi embora rapidamente com as amigas, e mal pude vê-la. Ainda assim, havia guardado na memória aquele olhar sério, sobrancelhas arqueadas, a pele alva, o cabelo escorrido, de um castanho que casava perfeitamente com seu rosto angelical. Naquele dia eu pude afirmar que a perfeição existia e se encontrava nas minhas aulas de literatura estrangeira.
            De repente, eu ansiava por aqueles momentos, com aquela turma, dia após dia, semana após semana. Já sabia seu nome… Leca… Na verdade, Helena Carla, mas todos a chamavam de Leca. No primeiro momento pensei ser o diminutivo de “moleca”, mas não combinava com o seu jeito de ser, pelo menos não o que eu idealizara para ela. Vez ou outra, nós nos cruzávamos nos corredores, e eu me atrevia a olhá-la e sorrir ligeiramente. Ela sempre sorria de forma educada e um brilho maior que o sol ofuscava tudo ao redor e só ela passava a existir.
            Percebi que era muito tímida, mal ouvia sua voz durante a aula, mesmo quando alguma discussão se acalorava. Eu queria tanto ouvi-la, queria tanto conversar com ela, mas como? Como encontrar o momento ideal? Durante semanas, eu me torturava pensando em um modo de falar, trocar ao menos duas palavras. Não que seus olhares e sorrisos para mim já não fossem suficientes quando a encontrava nos corredores, mas no íntimo sabia que ela apenas estava sendo simpática.
            Pouco depois de dois meses, eu a vi, sentada numa mesa mais afastada da cantina, na parte externa, à sombra de uma mangueira, lendo. Havia muitas árvores no campus e um bom número de alunos passavam as tardes gazeando aulas em conversas, descansos e leituras. Aproximei-me, passo a passo, tentando descobrir o que lia tão avidamente. Como não consegui identificar, venci meu medo e sentei-me ao seu lado. O momento fez-se naturalmente.
            – Oi! – disse, de forma súbita e um tanto atabalhoada.
            Ela levantou os olhos, surpresa. Ah! Se ela soubesse como ficava linda concentrada! Queria ter coragem e dizer isso a ela. Minhas mãos gelaram.
            – Oi! – ela respondeu sorrindo para mim. Definitivamente, era o sorriso mais lindo que meus olhos tiveram o privilégio de conhecer, e a voz parecia uma melodia de pássaros do campo. (Os românticos são incorrigíveis!)
            – Estou te atrapalhando? – perguntei, tentando disfarçar meu nervosismo.
            – Não! Claro que não! – continuava sorrindo, e eu mal conseguia parar de admirar sua beleza, tão intensa, ao mesmo tempo tão simples. Talvez fosse seu semblante angelical.
            – Eu vi que você estava lendo… fiquei curioso!
            – Ai meu Deus! – exclamou corando. – O senhor vai reclamar, aposto. Não é o tipo de literatura que deve aprovar.
            – Vou reclamar sim… por me chamar de “senhor” – dei um sorriso meio nervoso. – Não sou tão velho assim – e emendei logo, constrangido e arrependido pelo que acabara de dizer. – Mas não tenho problemas com nenhum tipo de literatura. O importante é gostar de ler.
            – Ah, eu amo ler! – e ela me mostrou a capa do livro. – Agatha Christie! Sou fã!
            – Puxa vida… não acredito nisso…
            – Tá vendo, não falei, vai reclamar… eu adoro histórias policiais, de suspense.
            – Eu?! Eu adoro também! Li todos os romances dela. E porque eu reclamaria? É uma ótima literatura. E se você gosta mesmo dos policiais, devia experimentar também ler Poe.
            – Hum... li um conto uma vez. Vamos estudá-lo?
            – Não, não este semestre. Por enquanto ficaremos nos americanos contemporâneos. Vamos começar a ver a obra de Fitzgerald na próxima aula. Com o Grande Gatsby.
            – Eu vi o filme! – disparou.
            E gargalhou, surpresa com a sua reação, fora quase um grito. Meu Deus, como ela era adorável! E ficamos conversando ali por mais alguns minutos, sobre obras diversas, presente, passado e futuro. Nunca pensei que fosse me sentir tão bem.
            Foi nossa primeira conversa. Infelizmente, não foi a primeira de muitas. Mas eu festejava cada pouco momento que ficava ao lado dela, apesar de sempre estar com as amigas. Nas semanas seguintes a minha motivação mudara: vê-la, por mais breve que fosse, me fazia o peito encher de alegria, e todo o resto do meu dia tornava-se mais leve.  Sentia-me outra vez adolescente, outra vez vivendo um grande amor. E sempre que podia, mudava o meu caminho para passar pela sala de Leca, na esperança de vê-la. Algumas vezes eu a via concentrada nos estudos, em outras conversando com as amigas. Já nas minhas aulas, eu lutava ardorosamente para não a olhar, pois decerto meu pensamento voaria longe, ao mesmo tempo em que eu continuaria ali inerte, preso ao seu olhar, com cara de bobo. Às vezes, quando era inevitável e nossos olhares se cruzavam, eu largava um pequeno, quase imperceptível, sorriso, o que ela retribua delicadamente, na mesma proporção. E nesses momentos meu coração acelerava, meu sangue pululava em minhas veias.
            E assim se passavam as horas, os dias, as semanas. O tempo voava e a cada dia o seu encanto para mim se tornava ainda maior…

            Meu irmão levantou-se, deu uma volta inteira em torno do sofá; aproveitou e fechou a porta da sala que dava para a varanda, começava a ventar e o tempo esfriara rapidamente.
            – Meu Deus, cara! Ela era sua aluna! Não dizem que isso é errado?
            – Errado?
            – Sim… Antiético, coisa desse tipo? Sempre escutei coisas desse tipo.
            – Bem, se era errado ou não, eu não sei, não posso dizer. Mas o que poderia haver de errado? Admirar uma garota? Achá-la a mulher mais linda do mundo? Se isso é antiético, não sei, não acho…
            – De qualquer forma, você não estava apenas a admirando, você estava apaixonado por ela.
            – Não! Apaixonado não… Paixão seria algo passageiro, algo momentâneo. E a paixão por diversas vezes é egoísta. Eu a queria feliz. Queria ver seu sorriso a qualquer custo. Para mim, vê-la era o suficiente.
            – Você a amava! – exclamou subitamente, deixando-se cair no sofá. – Deus do céu! Você a amava! Juro que sempre achei que você nunca havia amado ninguém. Suas histórias são sempre tão… tão soturnas… tão carregadas de amargura…
            Minhas pernas tremeram por um tempo, mas permaneci em silêncio, cabeça baixa.
            – E por que então você não falou com ela? Ora, se você a amava… Danem-se as convenções!
            – Não podia! Nunca!
            – E por quê? Por um acaso ela tinha alguém?
            Suspirei lentamente. De repente uma nuvem pousou demoradamente sobre minha cabeça.
            – E você acha que a garota mais linda que eu já conheci, que tem o sorriso e o jeito de ser mais adorável deste mundo, estaria sozinha? Claro que tinha! E pelo visto era apaixonada por ele.

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