sábado, 10 de setembro de 2011

Há dez anos... - parte final

            Era início de junho e o tempo esfriara além, e antes, do que eu esperava. Uma frente fria típica da época, diziam os moradores. Haveria no final de semana seguinte uma festa na cidade, uma grande festa em comemoração ao santo padroeiro. Todos estariam lá. Toda a cidade se mobilizava para isso. Desde o início eu havia decidido não ir, não era muito dado a festas, mas quando soube que a Leca estaria lá, mudei de ideia. Evidentemente que a programação e todas as conversas entre alunos, professores e funcionários, era acerca desse evento que tomava proporções espetaculares. Quando, na sexta-feira, comentei com os alunos que iria, alguns garotos perguntaram se eu dançava, pois o que não faltaria era música e mulher para um bom bate-coxa. Não consegui controlar o riso e me permiti um momento de distração com todos ali, junto com todos ali. Era já no final da aula, e não havia mais clima, no bom sentido, para continuar. Leca sempre era das últimas a sair, demorava arrumando o material. Eu me aproveitava disso para contemplá-la à distância, sorvendo cada minuto da sua beleza. Quando ficamos a sós, brinquei dizendo que gostaria de dançar com ela. Não sei de onde brotou tamanha ousadia de minha parte, mas a frase já havia deixado minha boca, não podia ser feito mais nada. Ela corou e disse que não costumava dançar, mas que comigo dançaria, seria um prazer. Decerto que não desconfiou, mas naquele instante, quando ela terminou de pronunciar aquelas poucas palavras, que tinham o som da melodia mais pura e harmoniosa, quase desmaiei de felicidade. Ela saiu em seguida, sem olhar para trás, sem perceber a semente da esperança que fora lançada. A partir daquele momento era só esperar o dia seguinte. O problema seria segurar a ansiedade nas pouco mais de vinte e quatro horas que faltavam.
            E chegou o sábado.
            A festa realmente era um acontecimento. Havia de tudo lá, barracas de comidas e bebidas, e a proximidade dos festejos juninos atraiu bandeirolas, fogueiras, fogos, pessoas vestidas a caráter e pessoas de todos os tipos. Fiquei surpreendido com tamanha animação. Mas a noite ganhou brilho e graça quando vi os cabelos castanhos, a pele clara, a boca rosada e toda a graça de Helena Carla. Estava produzida, usando um vestido verde oliva, que deixava metade das belas pernas à vista. O fôlego abandonou-me por completo, deixando um sopro de vida apenas para que meu coração não parasse de bater. Quando me viu, abriu um sorriso. E como eu gostaria de poder dizer – o meu sorriso. E como era lindo e gracioso! Aproximei-me dela, trêmulo, nervoso, como um garoto de doze anos.
            – Vai dançar comigo, não? – arrisquei.
            Ela respondeu com um sim tímido, baixando a cabeça. Mas reiterou que não sabia dançar muito bem. Ah, como estava bela! E quem se importa com o saber dançar, quase eu disse. E não mais vi o tempo passar. Afastei-me um pouco, esperando o momento, a música certa. Não queria sufoca-la, não queria que nada saísse errado. Definitivamente para mim o tempo não mais existia. Tudo ficava parado quando Leca estava por perto, e eu não a perdia de vista. As conversas com outras pessoas, professores que também estavam ali, não me interessavam, nada importava. Eu respondia como um robô programado, apenas esperando o momento de ir ter com minha amada. Ela era dona absoluta do universo, rainha de tudo que estivesse ao seu redor. Então eu vaguei por entre as pessoas, esperando o momento, a hora determinada, com meu coração aos pulos de ansiedade, aos pulos de felicidade. E então o momento chegou, quando uma música mais suave começou a ser tocada. Caminhei até ela, ignorando todos ao meu redor. Danem-se as convenções! Eu a chamei. Nós dançamos! Senti sua respiração próxima, seus cabelos tocando meu rosto, sua voz sussurrando coisas indecifráveis para mim. Naquele momento, eu tive, pela primeira vez em minha vida, a plena noção da felicidade. É uma súbita consciência das coisas ao redor. Como, diante daquele sentimento, todo o resto ficava tão pequeno, tão diminuto. Foram apenas algumas músicas, poucos minutos, mas foram minutos que guardaria para sempre no fundo da minha alma, como um dos melhores momentos da minha curta vida. Na última música, eu encostei minha face em sua face, senti o calor de sua pele. Nossos lábios se encontraram, e numa fração de segundos, pude sentir o seu hálito doce, pude sentir o seu beijo. Mas não passou mesmo de uma fração de segundos, pois a música acabou, e ela se afastou de mim. Não disse nada, apenas me olhou nos olhos. Pela primeira vez senti um olhar doído, que não pude decifrá-lo, e seria incorreto descrevê-lo.
            A noite terminou e no momento que eu ia embora, acenei para ela. Era um adeus que foi retribuído com mais um generoso sorriso. Só que algo havia mudado. Foi a primeira vez que dançamos, entretanto eu tinha a certeza de que seria a última também. E toda a felicidade que eu sentira naquela noite, foi-se aos poucos transformando em melancolia. A semente da esperança germinou, brotou, mas mingou num beijo roubado não correspondido. E na volta para casa, em companhia de um céu estrelado de lua crescente, a dor começou a crescer em meu peito.
            As semanas seguiram-se da mesma forma: pequenas e rápidas conversas, algumas trocas de olhares e sorrisos furtivos. Mas não como antes. Percebi que ela não mais era a última a deixar a sala, não ficava mais sozinha comigo. E a cada dia que passava, ao contrário do que eu queria, sentia o meu amor crescendo, minha admiração por aquela menina, aquela mulher, aumentando. Estava certo que ela nunca me enxergaria. Nunca me enxergara a bem da verdade, tudo nunca passara de uma bela amizade da aluna pelo professor. E eu desejava cada momento vê-la, ouvi-la, saber coisas sobre sua vida, seus desejos e anseios. Isso não mais era possível. Sonhos que como um castelo da areia foram-se desfazendo dia após dia. E as últimas aulas tornaram-se dolorosas, angustiantes. A imagem de sua beleza sempre me perseguiria e não sairia nunca mais dos meus pensamentos. Sua pele alva, seu rosto bem contornado, sua boca rosada, seus olhos inocentes. Ela definitivamente era um anjo, talvez ainda não soubesse, mas era sim, eu sabia que era. Pelo menos para mim, o mais belo anjo que Deus já colocou na Terra.

            Meu irmão levantou-se do sofá e bateu forte sobre ele com a mão. Grunhiu algo indecifrável, um resmungo de total reprovação. Depois se virou para mim:
            – E por que você não falou nada para ela?! Não te entendo… Ora, tem coisas no mundo que você deve atirar para cima e seguir o coração. Neste mundo a gente tem que ser feliz!
            – Mas eu te disse que ela tinha namorado! E ela nunca me enxergaria além de um amigo, talvez até um bom amigo! Nada mais do que isso!
            Eu gritava mais forte a cada frase. Meu rosto ficou inchado e vermelho. Ele também, e era como seu estivesse me vendo. Eu bufava e ele também.
            – Dane-se o namorado dela! Ela disse a você que tinha um, por acaso? – retruquei com a cabeça, ela nunca havia me dito. Mas ela rejeitou o meu beijo… Ele prosseguiu. – Você deveria ter se arriscado mais! Agora, dez anos depois, está arrependido? Qual o problema de levar um fora? Porra! Era o máximo que poderia acontecer, e provavelmente era o que iria acontecer. Um beijo de leve… que bobagem! Bobagem romântica!
            – Você não entende, não é? Ninguém entende… eu mesmo não me entendo. Mas uma coisa eu sei: eu a amava mais que tudo. E só a ideia que ela pudesse desconfiar do que eu sentia me atemorizava.
            – E por quê? Pelo que conheço de você, nesses quarenta anos, você nunca primou pela discrição. Seu rosto e suas atitudes o denunciavam sempre. Você realmente acha que ela não sabia desde o primeiro momento? Faça-me o favor!
            – Não sei… não sei… Mas se ela viesse a saber de algo, ela mudaria comigo. Como mudou! E eu não suportaria vê-la indiferente, vê-la se esquivar de mim, fugir, não querer falar comigo mais. Como de certa forma aconteceu. Mas uma coisa é certa: eu não suportaria ouvir de sua boca que eu era apenas um bom amigo, como tantas vezes eu já ouvi em minha vida. O medo de não poder mais olhar os seus olhos, ou ver o seu sorriso, para mim era pior que a morte. E além do mais, eu queria vê-la feliz. Para mim isso era o que importava, e importa até hoje. Vê-la feliz… E eu faria de tudo para sempre poder ver um sorriso entre seus lábios. Não brincava quando dizia que ela era um anjo. Ela foi feita para estar sempre sorrindo, sempre feliz. Se você a tivesse conhecido… Se eu pudesse, daria minha vida a ela. A minha vida… É por isso que o meu amor já nascera impossível, porque eu já havia ganhado muito da vida, eu a conheci. Não ousaria, em momento algum, pedir algo tão descabido. Ela podia ou não ter um namorado, mas tinha os amigos, todos da mesma idade. Ela estava feliz, ela era feliz. Talvez um dia, quem sabe, ela saiba que um homem a amou tanto quanto ela merecia.
            – Quanta idiotice! – balbuciou ele, olhando para mim, com aquele olhar de reprovação de sempre. – Nunca ouvi tanta besteira nesse mundo! Você procura se agarrar a justificativas românticas para esconder sua fraqueza, sua covardia! E fica se lamuriando há dez anos por isso, culpando-se por uma infelicidade que você causou. Você me envergonha. Você nunca poderia tê-la deixado…
            – Eu não a deixei! – gritei. Olhos cerrados, punhos que socavam o sofá. – Você sabe muito bem o que aconteceu! Não quis abandonar tudo. Não quis deixá-la… Eu tive que fazer isso… e isso me doeu mais que sua própria morte, meu irmão.
            Baixei a cabeça e chorei copiosamente. Pela primeira vez eu pensara na minha vida, na minha eterna solidão. Lembrei-me de Leca, da sua testa franzida quando não estava entendendo o assunto, e do sorriso quando conversava com uma das amigas. Lembrei-me da sua voz doce e suave, do seu jeito tímido e inocente. Ela era perfeita, sempre será perfeita!
            Ainda soluçando levantei os olhos na direção do meu irmão, que não falava mais. Encontrei a sala vazia, não havia ninguém. Não havia meu irmão, não havia ninguém. Há dez anos que eu não o via, desde que se acidentara e morrera. E eu tive que voltar para a casa dos meus pais, para cuidar deles. Sobre a mesa apenas uma garrafa vazia de vinho e uma taça. Eu estava só, como sempre eu estava só. Tudo não passara de delírios, traquinagens do meu inconsciente. Ri comigo mesmo. Levantei-me, abri a porta que dava para a varanda e uma lufada de vento frio inundou a sala. Saí, dei alguns passos, respirando forte o ar marítimo. A lua estava cheia e brilhava muito. 



2 comentários:

DG Jem disse...

Cheguei a pensar que Leca havia se casado com o irmão; em outro momento, ela mesma tinha morrido.

Mas o que aconteceu com ela?
E ainda, qual o motivo dele não ter se arriscado?
Quando ele diz "eu não quis deixa-la...", qual foi a justificativa palpável, o motivo real?

É meu caro, pelo visto, acho que "a traquinagem do inconsciente" do personagem é um reflexo do seu autor.


Ótimo conto, que o próximo não demore de sair.

Parabéns Professor.

Cacau disse...

Ver ao longe é um dom especial de certas pessoas, sobretudo daquelas que não é pela realidade alheia que caminham.Mas sim pelo dom da escrita.
Escrevo para esvaziar minha cabeça e encher meu coração.O escritor,porém não escreve o que ouve, nem o que houve. Escreve o que sente.
As coisas mais belas são ditadas pela loucura e escritas pela razão.