Primavera
Eu fechei os olhos e entrei numa
escuridão sem fim. Quase pude sentir o último sopro de ar deixar meus pulmões.
Sem dor, sem mistério. Apenas um leve adormecer de pernas, braços. Um sono que
me tomou completamente.
A escuridão aos poucos se foi
desfazendo e uma súbita claridade tomou conta de mim. Mal consegui abrir os
olhos, ofuscado. Estaria morto ou tudo não passava de um sonho? Não me lembrava
de como chegara até ali. Deitei-me cedo, com uma dor de cabeça fortíssima, após
uma discussão violenta. E de repente, a dor sumiu e fez-se paz à minha volta.
Um sentimento de alívio indescritível. Estava agora no meio de um campo de
flores, imenso. Lírios amarelos, pressupus, perpassando minhas mãos sobre eles.
Um campo vastíssimo. Caminhei entre as flores rumo ao desconhecido. Uma brisa
fria chocava-se contra meu rosto, uma brisa diferente, cortante. Foi quando me
dei conta de que vestia apenas uma calça surrada, e tinha o peito e braços nus.
À medida que eu avançava, o vento frio tornava-se mais dilacerante.
A paisagem não mudava. Não havia
outra coisa no meu raio de visão que não as flores amarelas e um céu infinito
em tons acobreados. Não havia nuvens. Não havia estrelas. Não parecia dia, ou
noite. Onde eu estava? Morto, sonhando? Por que naquele momento os pensamentos
eram tão obscuros, obtusos? Os meus pés descalços sentiam cada grão de areia,
cada pequena pedra, a cada passada. Um filete de suor descia por minhas
têmporas, contornando as bochechas, deslizando sobre o pescoço, indo
misturar-se a todas as outras gotas de suor que brotavam de minhas costas e
peito.
Devia estar caminhando há
aproximadamente duas horas, e a não alteração da paisagem me angustiava mais a
cada passo. O que mudava era o sopro do vento, cada vez mais forte, cada vez
mais frio. Onde estavam as minhas roupas, o meu agasalho. Quando olhei para o
céu, percebi a mudança do marrom avermelhado para o branco, mas não eram as nuvens,
apenas o céu que se tornava branco. Branco gelo, branco neve. Desci a vista
para o terreno e as flores amarelas tornaram-se vermelhas, mas ainda eram lírios.
De repente um uivo ecoou no espaço vazio à minha frente, mas não o uivo de um
animal, e sim o uivo do vento, fazendo curvas, rodopios. As flores bailavam
diante de mim. Metros adiante eu percebi finalmente uma mudança na paisagem.
Principiei uma corrida alucinada. Os meus pés doíam, quiçá estivessem
sangrando. Que importava, eu estava morto! Foi quando a areia virou rocha sob
meus pés feridos e um precipício se materializou a poucos metros, fazendo com que
eu brecasse assustado. O infinito estava diante dos meus olhos. Olhei para
baixo, tiritando de frio, ofegante de cansaço, mas tomado de uma curiosidade a
qual eu desconhecia possuir. Inclinei a cabeça na beirada e um zunido em meus
ouvidos deixou-me tonto. O impulso de sentar-me foi imediato. Não havia nada
adiante, o céu branco tornava-se argênteo e por fim um negrume se construía e
preenchia o restante da visão. Os braços cruzados sobre meu peito eram uma
tentativa inútil de proteção contra a friagem. E se eu me jogasse dali? Se
estivesse dormindo, acordaria, se estivesse morto, nada mudaria. Mas parecia
que minha falta de coragem em vida perpetuava na minha morte.
Já fazia muitas horas que eu me via
ali sentado, olhando o nada, sentindo um completo vazio de pensamentos e
emoções. As lembranças chegavam em lufadas, cortantes, como a aura fria que
soprava, vezes forte, vezes fraca, e que parecia ser a única coisa imutável
naquele lugar. Lágrimas vez e outra brotavam e secavam antes mesmo de deixarem
os olhos. Olhei o sangue seco e preto na planta dos meus pés. Seria ali o
purgatório, o local para se avaliar os erros e acertos em vida? Será que minha
descrença em algo maior me fez cair numa zona morta, sem companhia. E tanto
medo eu tive da solidão que agora eu passaria sozinho a eternidade? O céu não
estava mais acobreado, ou branco, ou negro. Lâminas alaranjadas, tons
vermelhos, pinceladas púrpuras mudavam o aspecto. Era bonito de se ver. Olhei os
lírios atrás de mim e as flores mudavam de cores também, como se fossem um
reflexo, ou melhor, a cor complementar do que estava acima delas.
Não anoitecia, não amanhecia. Mas ao
meu contar do que seria o terceiro dia, surgiu uma borboleta solitária
sobrevoando o campo de flores. Tinha as asas pretas, brancas e laranjas, em
desenhos psicodélicos. Ela voou em minha direção e me ficou fazendo voltas até
pousar na beirada do precipício. Tive vontade de falar com ela, dizer “oi”. Talvez
eu estivesse ficando louco. Ela ficou parada um tempo e depois voou, sumindo
nas trevas daquele buraco sem fim. Senti minha alma sombria enquanto pensamentos
soturnos perpassavam dentro de mim. Talvez ali fosse um local para reflexão.
Tantos sempre quiseram saber o que havia depois da morte. Anjos, demônios, almas
vagando solitárias, espíritos de luz, talvez Deus. Eu nunca acreditei em nada.
Do pó viemos, ao pó voltaremos. Fato! E agora estou eu tendo o privilégio de
descobrir a tão pesquisada vida após a morte. Engraçada é a ironia por trás dos
feitos. E se eu não estivesse morto, apenas preso a um sonho sem fim, em coma,
sobre a cama num leito de hospital, com minha esposa e meus filhos chorando por
mim. Aquele pensamento me deixou ainda mais deprimido e a vontade de atirar-me
do infinito negro ganhava força. Queria poder chorar agora, mas as lágrimas há
muito haviam secado. Pobre alma a minha, pobre do meu espírito descrente.
Enquanto as horas passavam
incólumes, eu refletia, atento às mudanças de cores, do céu, das flores. De
repente uma música despertou-me de meu transe. Uma melodia lenta, cativante.
Virei-me na direção de onde vinham as notas e dirigi-me até elas. Uma estrada
abriu-se diante de meus olhos, um caminho para baixo, deixando as flores para
trás. Uma muralha começou a se erguer entre a pequena estrada, rochas
cristalinas, lâminas perfeitas, eu na verdade me precipitava para baixo, de
encontro ao escuro que há pouco contemplava do alto, para o mal… ou para o bem.
Mas não estava escuro, pelo contrário, a cada passo que eu dava, o mundo se
transformava. O céu tornara-se azul e algo que lembrava o sol materializava-se
aos poucos. O frio constante, ao qual eu já me havia acostumado, transformou-se
em calor. Quilômetros depois a estradinha findou e o chão de pedras virou um
chão de areia brancas. A música nem aumentava, tampouco diminuía. Era
conhecida, trouxe-me lembranças. Notas harmoniosas, singelas, agradáveis.
Enquanto caminhava tentei organizar aquelas memórias perdidas. Senti o chão
mudar outra vez, areia mais fina sob meus pés. Aos poucos a música foi sendo
oprimida pelo marulhar das ondas. E quando me dei conta, estava numa praia, as
ondas quebrando formando uma espuma branca que se espalhava por toda a extensão
visível. O sol surgiu forte, ofuscante e o mar alcançou meus pés. Senti a água
gélida da manhã. Seria manhã? O sol nascia no horizonte. Continuei caminhando,
sentindo a areia úmida sob meus pés e de quando em quando era alcançado por uma
onda mais arredia que se alongava na areia. Não escutava mais a música que por
horas ficara em meus ouvidos, agora apenas as ondas que se chocavam e morriam
na praia.
Não fazia ideia do tempo que estava
caminhando, o cenário não mudava. Mas agora o mundo parecia o mundo que eu
conhecia. Não havia mais um céu multicor, e o sol arqueava como esperado e
programado pela natureza. Haveria noite finalmente? Pois o sol começava a se
posicionar de meu lado esquerdo, enquanto eu caminhava para o que imaginava ser
o norte. A claridade do poente me encadeava e eu mal enxergava metros à minha
frente. Subitamente, um vulto se fez um pouco mais adiante de mim. Era uma
mulher, pela silhueta enegrecida pela sombra do crepúsculo. Apressei o passo
até ela. Eu não estava sozinho naquele lugar! Se eu estava morto, seria ela um
anjo a me guiar? Os cabelos esvoaçavam pela força do vento. Sua silhueta foi
tornando-se mais clara. Ela olhava o mar. Estando já bem próximo percebi que
estava nua. Parei instantaneamente, de certo modo chocado, ou atordoado, com
aquela imagem. Ela era linda. Tentei falar com ela, mas ela principiou a andar.
Caminhei mais rapidamente, e ainda assim não consegui alcançá-la. Contemplei suas curvas generosas. E
quando ela atravessava alguma faixa iluminada, percebi que era alva como as
espumas das ondas que quebravam na praia e tinha um balançado no jeito de andar
enlouquecedor. Seus cabelos bailavam ao vento, cabelos dourados. Havia uma
tatuagem, uma flor que brotava de suas nádegas perfeitas e rosadas. Brotava um
ramo e dele surgiam flores vermelhas que findavam no meio de suas costas. Nunca
vira algo mais belo. E ela era assustadoramente bela.
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