domingo, 20 de outubro de 2013

As Estações - 1ª parte



Primavera


            Eu fechei os olhos e entrei numa escuridão sem fim. Quase pude sentir o último sopro de ar deixar meus pulmões. Sem dor, sem mistério. Apenas um leve adormecer de pernas, braços. Um sono que me tomou completamente.

            A escuridão aos poucos se foi desfazendo e uma súbita claridade tomou conta de mim. Mal consegui abrir os olhos, ofuscado. Estaria morto ou tudo não passava de um sonho? Não me lembrava de como chegara até ali. Deitei-me cedo, com uma dor de cabeça fortíssima, após uma discussão violenta. E de repente, a dor sumiu e fez-se paz à minha volta. Um sentimento de alívio indescritível. Estava agora no meio de um campo de flores, imenso. Lírios amarelos, pressupus, perpassando minhas mãos sobre eles. Um campo vastíssimo. Caminhei entre as flores rumo ao desconhecido. Uma brisa fria chocava-se contra meu rosto, uma brisa diferente, cortante. Foi quando me dei conta de que vestia apenas uma calça surrada, e tinha o peito e braços nus. À medida que eu avançava, o vento frio tornava-se mais dilacerante.
            A paisagem não mudava. Não havia outra coisa no meu raio de visão que não as flores amarelas e um céu infinito em tons acobreados. Não havia nuvens. Não havia estrelas. Não parecia dia, ou noite. Onde eu estava? Morto, sonhando? Por que naquele momento os pensamentos eram tão obscuros, obtusos? Os meus pés descalços sentiam cada grão de areia, cada pequena pedra, a cada passada. Um filete de suor descia por minhas têmporas, contornando as bochechas, deslizando sobre o pescoço, indo misturar-se a todas as outras gotas de suor que brotavam de minhas costas e peito.
            Devia estar caminhando há aproximadamente duas horas, e a não alteração da paisagem me angustiava mais a cada passo. O que mudava era o sopro do vento, cada vez mais forte, cada vez mais frio. Onde estavam as minhas roupas, o meu agasalho. Quando olhei para o céu, percebi a mudança do marrom avermelhado para o branco, mas não eram as nuvens, apenas o céu que se tornava branco. Branco gelo, branco neve. Desci a vista para o terreno e as flores amarelas tornaram-se vermelhas, mas ainda eram lírios. De repente um uivo ecoou no espaço vazio à minha frente, mas não o uivo de um animal, e sim o uivo do vento, fazendo curvas, rodopios. As flores bailavam diante de mim. Metros adiante eu percebi finalmente uma mudança na paisagem. Principiei uma corrida alucinada. Os meus pés doíam, quiçá estivessem sangrando. Que importava, eu estava morto! Foi quando a areia virou rocha sob meus pés feridos e um precipício se materializou a poucos metros, fazendo com que eu brecasse assustado. O infinito estava diante dos meus olhos. Olhei para baixo, tiritando de frio, ofegante de cansaço, mas tomado de uma curiosidade a qual eu desconhecia possuir. Inclinei a cabeça na beirada e um zunido em meus ouvidos deixou-me tonto. O impulso de sentar-me foi imediato. Não havia nada adiante, o céu branco tornava-se argênteo e por fim um negrume se construía e preenchia o restante da visão. Os braços cruzados sobre meu peito eram uma tentativa inútil de proteção contra a friagem. E se eu me jogasse dali? Se estivesse dormindo, acordaria, se estivesse morto, nada mudaria. Mas parecia que minha falta de coragem em vida perpetuava na minha morte.

            Já fazia muitas horas que eu me via ali sentado, olhando o nada, sentindo um completo vazio de pensamentos e emoções. As lembranças chegavam em lufadas, cortantes, como a aura fria que soprava, vezes forte, vezes fraca, e que parecia ser a única coisa imutável naquele lugar. Lágrimas vez e outra brotavam e secavam antes mesmo de deixarem os olhos. Olhei o sangue seco e preto na planta dos meus pés. Seria ali o purgatório, o local para se avaliar os erros e acertos em vida? Será que minha descrença em algo maior me fez cair numa zona morta, sem companhia. E tanto medo eu tive da solidão que agora eu passaria sozinho a eternidade? O céu não estava mais acobreado, ou branco, ou negro. Lâminas alaranjadas, tons vermelhos, pinceladas púrpuras mudavam o aspecto. Era bonito de se ver. Olhei os lírios atrás de mim e as flores mudavam de cores também, como se fossem um reflexo, ou melhor, a cor complementar do que estava acima delas.

            Não anoitecia, não amanhecia. Mas ao meu contar do que seria o terceiro dia, surgiu uma borboleta solitária sobrevoando o campo de flores. Tinha as asas pretas, brancas e laranjas, em desenhos psicodélicos. Ela voou em minha direção e me ficou fazendo voltas até pousar na beirada do precipício. Tive vontade de falar com ela, dizer “oi”. Talvez eu estivesse ficando louco. Ela ficou parada um tempo e depois voou, sumindo nas trevas daquele buraco sem fim. Senti minha alma sombria enquanto pensamentos soturnos perpassavam dentro de mim. Talvez ali fosse um local para reflexão. Tantos sempre quiseram saber o que havia depois da morte. Anjos, demônios, almas vagando solitárias, espíritos de luz, talvez Deus. Eu nunca acreditei em nada. Do pó viemos, ao pó voltaremos. Fato! E agora estou eu tendo o privilégio de descobrir a tão pesquisada vida após a morte. Engraçada é a ironia por trás dos feitos. E se eu não estivesse morto, apenas preso a um sonho sem fim, em coma, sobre a cama num leito de hospital, com minha esposa e meus filhos chorando por mim. Aquele pensamento me deixou ainda mais deprimido e a vontade de atirar-me do infinito negro ganhava força. Queria poder chorar agora, mas as lágrimas há muito haviam secado. Pobre alma a minha, pobre do meu espírito descrente.
            Enquanto as horas passavam incólumes, eu refletia, atento às mudanças de cores, do céu, das flores. De repente uma música despertou-me de meu transe. Uma melodia lenta, cativante. Virei-me na direção de onde vinham as notas e dirigi-me até elas. Uma estrada abriu-se diante de meus olhos, um caminho para baixo, deixando as flores para trás. Uma muralha começou a se erguer entre a pequena estrada, rochas cristalinas, lâminas perfeitas, eu na verdade me precipitava para baixo, de encontro ao escuro que há pouco contemplava do alto, para o mal… ou para o bem. Mas não estava escuro, pelo contrário, a cada passo que eu dava, o mundo se transformava. O céu tornara-se azul e algo que lembrava o sol materializava-se aos poucos. O frio constante, ao qual eu já me havia acostumado, transformou-se em calor. Quilômetros depois a estradinha findou e o chão de pedras virou um chão de areia brancas. A música nem aumentava, tampouco diminuía. Era conhecida, trouxe-me lembranças. Notas harmoniosas, singelas, agradáveis. Enquanto caminhava tentei organizar aquelas memórias perdidas. Senti o chão mudar outra vez, areia mais fina sob meus pés. Aos poucos a música foi sendo oprimida pelo marulhar das ondas. E quando me dei conta, estava numa praia, as ondas quebrando formando uma espuma branca que se espalhava por toda a extensão visível. O sol surgiu forte, ofuscante e o mar alcançou meus pés. Senti a água gélida da manhã. Seria manhã? O sol nascia no horizonte. Continuei caminhando, sentindo a areia úmida sob meus pés e de quando em quando era alcançado por uma onda mais arredia que se alongava na areia. Não escutava mais a música que por horas ficara em meus ouvidos, agora apenas as ondas que se chocavam e morriam na praia.

            Não fazia ideia do tempo que estava caminhando, o cenário não mudava. Mas agora o mundo parecia o mundo que eu conhecia. Não havia mais um céu multicor, e o sol arqueava como esperado e programado pela natureza. Haveria noite finalmente? Pois o sol começava a se posicionar de meu lado esquerdo, enquanto eu caminhava para o que imaginava ser o norte. A claridade do poente me encadeava e eu mal enxergava metros à minha frente. Subitamente, um vulto se fez um pouco mais adiante de mim. Era uma mulher, pela silhueta enegrecida pela sombra do crepúsculo. Apressei o passo até ela. Eu não estava sozinho naquele lugar! Se eu estava morto, seria ela um anjo a me guiar? Os cabelos esvoaçavam pela força do vento. Sua silhueta foi tornando-se mais clara. Ela olhava o mar. Estando já bem próximo percebi que estava nua. Parei instantaneamente, de certo modo chocado, ou atordoado, com aquela imagem. Ela era linda. Tentei falar com ela, mas ela principiou a andar. Caminhei mais rapidamente, e ainda assim não consegui alcançá-la. Contemplei suas curvas generosas. E quando ela atravessava alguma faixa iluminada, percebi que era alva como as espumas das ondas que quebravam na praia e tinha um balançado no jeito de andar enlouquecedor. Seus cabelos bailavam ao vento, cabelos dourados. Havia uma tatuagem, uma flor que brotava de suas nádegas perfeitas e rosadas. Brotava um ramo e dele surgiam flores vermelhas que findavam no meio de suas costas. Nunca vira algo mais belo. E ela era assustadoramente bela.


Nenhum comentário: