domingo, 3 de novembro de 2013

As Estações - 2ª parte


Outono


            Era outono. Não se viam flores castanhas espalhadas pelo chão, nas calçadas e ruas, como em tantas paisagens descritas nos livros, nos filmes. Simplesmente fazia menos calor, chovia um pouco mais.
            Caminhei lentamente ao final daquela tarde. Não queria voltar para casa. Não queria enfrentar minha vida por mais um dia que fosse. Não queria, mas tinha de enfrentar os problemas, pois eles não fugiam de mim. Entre a expectativa e frustração, a linha é muito tênue…
            Algumas gotas principiaram a cair. As nuvens não eram densas, não seria chuva forte, mas foi o suficiente para distrair meus pensamentos por uma fração de segundos. Um vento frio correu pela rua balançando a copa de algumas árvores mais adiante. Continuei a caminhada o mais lentamente possível, enquanto a camisa molhava cada vez mais. Ao parar diante do portão, respirei fundo, olhei o céu mais uma vez. As gotas caíam uma a uma, em câmera lenta, finas e inofensivas.
            Ouvi barulho na cozinha quando pus minha pasta sobre a cadeira. Ela percebeu que eu havia chegado e apareceu.
            “Chegou tarde”, ela disse. “Outra vez…”, complementou laconicamente, no que olhei pela janela e ainda podia contemplar o crepúsculo.
            Não respondi de imediato. Sentei no sofá, pegando o controle da televisão. Não queria outra discussão, outra disputa de argumentos sem sentido. Como eu queria morrer naquele momento, talvez me livrasse dos tormentos e infortúnios da vida. Não passava nada de interessante na TV e desliguei-a, para em seguida ir-me arrastando lentamente para o quarto, onde poderia tomar um banho e me desligar por alguns instantes do mundo. Meus pés doíam e quando tirei os sapatos, uma onda de alívio surgiu como um bálsamo restaurador. Tranquei-me no banheiro aproveitando para contemplar minha fisionomia cansada. Observei o exato momento em que meu olhos foram-se avermelhando, a angústia crescer no meu peito e lágrimas recorrentes brotarem. “Sou um fracasso!”
            O jantar estava servido e comi sozinho. Ela estava na sala, assistindo às novelas. Sentei-me na poltrona e permanecemos em silêncio por alguns minutos. No intervalo ela abaixou o volume, virou-se para mim e perguntou:
            “Conseguiu algo?”
            Era o prelúdio para uma nova discussão. Minhas opções eram continuar em silêncio ou responder e esperar as consequências. Optei pela segunda.
            “Não… não consegui nada.”
            “Se você se esforçasse um pouco mais…”
            Eu sabia que a conversa em tom baixo, polida, não duraria muito. Ela sabia que eu não aguentaria calado. Depois de alguns anos de convivência, saber os defeitos de cada um se mostrava mais importante do que as próprias qualidades. O problema é que ela sabia explorar os meus muito bem.
            “Não acredito que teremos outra vez a mesma discussão.”
            “Não deveríamos, não é?”, retrucou ela. “Mas estou cansada de sustentar você e não ver você se empenhando.”
            “Faz três semanas que eu saio todos os dias às seis da manhã, volto às seis da noite, passo o tempo todo andando, ouvindo desculpas esfarrapadas, muitas vezes sendo humilhado… Você acha que é fácil pra mim?”
            Ela respirou fundo e continuou.
            “Não digo que você não está procurando, mas acho que você não vai nos lugares certos. Quem está desempregado, não pode escolher… ou estou errada?”
            “Sinceramente? Você sabe muito bem que não é assim que a coisa funciona. Tantos anos de estudo… diploma… pra ficar aceitando qualquer coisa? Você se sujeitaria a isso por acaso?”
            “Meu emprego é estável, não depende do meu humor…”
            “Não me venha com essa, sabe que não fui demitido por incompetência minha.”
            “Mas brigou com o seu chefe, brigou com quem mandava e tinha poder sobre você!”
            “Não vou voltar a esse assunto. Acho que já esgotamos essa questão muito tempo atrás. Toda vez que começamos essa discussão, o assunto volta. Você sempre usa isso pra me menosprezar…”
            “Não seja hipócrita! Não se faça de inocente! Você é acomodado, preguiçoso!”
            “Chega! Já cansei disso!… cansei de você sempre me apontar os defeitos. Nunca neguei nenhum deles, mas sabe muito bem que eu mudei, que eu estava muito bem no trabalho, crescendo… Mas aquele filho da puta armou um esquema sujo! Não quis participar e ele ferrou comigo. Ou você queria que eu fosse desonesto?”
            Ela se calou por um tempo, procurando palavras. Meu coração batia forte no peito. Uma discussão sempre me abalava. Por mais que eu tentasse me conter, os ânimos se exaltavam. E também as palavras dela atingiam em cheio a minha alma. Me sentia um lixo…
            “Não ponha palavras na minha boca!”, retrucou ela. “É lógico que você não deveria ter se envolvido. Eu falo no geral, você sempre sonha, esquece da realidade às vezes… Esquece que tem família.”
            “Não seja injusta! Nunca faltou nada aqui, nunca! E quando você me conheceu, eu trabalhava, enquanto você terminava sua faculdade…”
            Ela calou-se. O roteiro era sempre o mesmo, cada discussão, cada argumento seguindo a ordem esperada, dia após dia. Ficaríamos longos minutos debatendo de quem era a culpa do meu fracasso. Difícil era quando a mentira começava a se tornar verdade. E cada vez que me era fechada uma porta, eu me questionava se ela não teria razão. Naquele momento eu ainda tinha forças de combater as agressões, mas temia que num futuro breve, eu já as aceitasse e assumisse como fato confirmado.
            Aos poucos os sons foram retornando e a realidade se refazendo diante de mim. Ela havia acabado de desligar a televisão e correr para o quarto. Pelo menos eu agora teria um pouco de tranquilidade. Levantei-me da poltrona, apaguei as luzes e deitei-me no sofá. Queria poder fechar os olhos e não acordar nunca mais. O relacionamento chegara definitivamente ao fim? Não era mais possível viver naquela situação, quando ambos se agrediam, ambos diziam coisas com o único intuito de agredir. Houve uma época de sonhos, em que apenas palavras de amor eram proferidas. É assim com cada casal. Lembrei-me dos amigos que me disseram para ter cuidado. “Ela não me parece confiável…”, disse-me um. “Ela é interesseira…”, disse-me outro. Também fiquei contra a minha família, com quem ela rompeu ligações há alguns anos. “Sinto muito por você, meu filho, mas é sua vida…”, disse-me minha mãe certa vez. Desde que perdi o emprego, ela mudara, tornou-se fria, amargurada. As primeiras frases de crítica logos se converteram em lições de moral, depois em cobranças. As brigas eram consequências inequívocas. A separação era iminente, pensei. Cansei de brigar.
            Era alta madrugada e o sono continuava distante de mim. De vez em quando eu levantava da cama, ia até a cozinha, tomava um copo d’água e olhava o céu cinzento. Eu não gostava muito do outono, era uma estação de indefinições. Quando o sono lhe falta, sobra filosofia barata. Sentei-me perto de uma janela e tentei ver o céu, mas apenas gotas desciam iluminadas pela luz oculta do luar. Senti uma pontada de dor na minha nuca, que depois caminhou em direção à minha têmpora esquerda. “Maldita enxaqueca”, pensei. Não havia nada melhor para piorar meu dia. Fiquei olhando para o lado de fora na esperança que as coisas mudassem, que de repente eu fechasse os olhos e tudo voltasse a ser como antes. Mas antes quando? Quando eu fui feliz verdadeiramente pela última vez?

            Coloquei o copo de água sobre a pia, caminhei a passos lentos em direção à cama. O coração palpitava forte, uma pequena tontura fez com que eu me apoiasse na parede do quarto. Todos os meus dias agora são de fortes emoções, ri comigo mesmo. Em determinados momentos, é importante que tenhamos senso de humor para rir de nossas maiores desgraças. Um dia as coisas mudam, um dia tudo acaba. Afastei o lençol, arrumei o travesseiro e me deitei. Ela dormia virada para o outro lado. Naquele momento ela não parecia tão assustadora, era uma sombra da garota que foi um dia. Acariciei seu rosto, seus cabelos cacheados. Por que ela não mantinha sempre aquelas feições plácidas, aquele semblante sereno. Dei um beijo suave em seu rosto e repousei olhando para o teto. Não mais chovia. Uma pequena onda de calor começava a se formar. Senti meu coração palpitar mais forte. A dor de cabeça aumentou assustadoramente. De repente me dei conta que algo de errado estava acontecendo comigo. Gritei e o mundo no instante seguinte ficou sem luz.


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