Outono
Era outono. Não se viam flores
castanhas espalhadas pelo chão, nas calçadas e ruas, como em tantas paisagens
descritas nos livros, nos filmes. Simplesmente fazia menos calor, chovia um
pouco mais.
Caminhei
lentamente ao final daquela tarde. Não queria voltar para casa. Não queria
enfrentar minha vida por mais um dia que fosse. Não queria, mas tinha de
enfrentar os problemas, pois eles não fugiam de mim. Entre a expectativa e
frustração, a linha é muito tênue…
Algumas gotas principiaram a cair.
As nuvens não eram densas, não seria chuva forte, mas foi o suficiente para
distrair meus pensamentos por uma fração de segundos. Um vento frio correu pela
rua balançando a copa de algumas árvores mais adiante. Continuei a caminhada o
mais lentamente possível, enquanto a camisa molhava cada vez mais. Ao parar
diante do portão, respirei fundo, olhei o céu mais uma vez. As gotas caíam uma
a uma, em câmera lenta, finas e inofensivas.
Ouvi barulho na cozinha quando pus
minha pasta sobre a cadeira. Ela percebeu que eu havia chegado e apareceu.
“Chegou tarde”, ela disse. “Outra
vez…”, complementou laconicamente, no que olhei pela janela e ainda podia
contemplar o crepúsculo.
Não respondi de imediato. Sentei no
sofá, pegando o controle da televisão. Não queria outra discussão, outra
disputa de argumentos sem sentido. Como eu queria morrer naquele momento,
talvez me livrasse dos tormentos e infortúnios da vida. Não passava nada de
interessante na TV e desliguei-a, para em seguida ir-me arrastando lentamente
para o quarto, onde poderia tomar um banho e me desligar por alguns instantes
do mundo. Meus pés doíam e quando tirei os sapatos, uma onda de alívio surgiu
como um bálsamo restaurador. Tranquei-me no banheiro aproveitando para contemplar
minha fisionomia cansada. Observei o exato momento em que meu olhos foram-se
avermelhando, a angústia crescer no meu peito e lágrimas recorrentes brotarem.
“Sou um fracasso!”
O jantar estava servido e comi
sozinho. Ela estava na sala, assistindo às novelas. Sentei-me na poltrona e
permanecemos em silêncio por alguns minutos. No intervalo ela abaixou o volume,
virou-se para mim e perguntou:
“Conseguiu algo?”
Era o prelúdio para uma nova
discussão. Minhas opções eram continuar em silêncio ou responder e esperar as
consequências. Optei pela segunda.
“Não… não consegui nada.”
“Se você se esforçasse um pouco
mais…”
Eu sabia que a conversa em tom
baixo, polida, não duraria muito. Ela sabia que eu não aguentaria calado.
Depois de alguns anos de convivência, saber os defeitos de cada um se mostrava
mais importante do que as próprias qualidades. O problema é que ela sabia
explorar os meus muito bem.
“Não acredito que teremos outra vez
a mesma discussão.”
“Não deveríamos, não é?”, retrucou
ela. “Mas estou cansada de sustentar você e não ver você se empenhando.”
“Faz três semanas que eu saio
todos os dias às seis da manhã, volto às seis da noite, passo o tempo todo
andando, ouvindo desculpas esfarrapadas, muitas vezes sendo humilhado… Você
acha que é fácil pra mim?”
Ela respirou fundo e continuou.
“Não digo que você não está
procurando, mas acho que você não vai nos lugares certos. Quem está
desempregado, não pode escolher… ou estou errada?”
“Sinceramente? Você sabe muito bem
que não é assim que a coisa funciona. Tantos anos de estudo… diploma… pra ficar
aceitando qualquer coisa? Você se sujeitaria a isso por acaso?”
“Meu emprego é estável, não depende
do meu humor…”
“Não me venha com essa, sabe que não
fui demitido por incompetência minha.”
“Mas brigou com o seu chefe, brigou
com quem mandava e tinha poder sobre você!”
“Não vou voltar a esse assunto. Acho
que já esgotamos essa questão muito tempo atrás. Toda vez que começamos essa
discussão, o assunto volta. Você sempre usa isso pra me menosprezar…”
“Não seja hipócrita! Não se faça de
inocente! Você é acomodado, preguiçoso!”
“Chega! Já cansei disso!… cansei de
você sempre me apontar os defeitos. Nunca neguei nenhum deles, mas sabe muito
bem que eu mudei, que eu estava muito bem no trabalho, crescendo… Mas aquele
filho da puta armou um esquema sujo! Não quis participar e ele ferrou comigo.
Ou você queria que eu fosse desonesto?”
Ela se calou por um tempo,
procurando palavras. Meu coração batia forte no peito. Uma discussão sempre me
abalava. Por mais que eu tentasse me conter, os ânimos se exaltavam. E também
as palavras dela atingiam em cheio a minha alma. Me sentia um lixo…
“Não ponha palavras na minha boca!”,
retrucou ela. “É lógico que você não deveria ter se envolvido. Eu falo no
geral, você sempre sonha, esquece da realidade às vezes… Esquece que tem
família.”
“Não seja injusta! Nunca faltou nada
aqui, nunca! E quando você me conheceu, eu trabalhava, enquanto você terminava
sua faculdade…”
Ela calou-se. O roteiro era sempre o
mesmo, cada discussão, cada argumento seguindo a ordem esperada, dia após dia.
Ficaríamos longos minutos debatendo de quem era a culpa do meu fracasso.
Difícil era quando a mentira começava a se tornar verdade. E cada vez que me
era fechada uma porta, eu me questionava se ela não teria razão. Naquele
momento eu ainda tinha forças de combater as agressões, mas temia que num
futuro breve, eu já as aceitasse e assumisse como fato confirmado.
Aos poucos os sons foram retornando
e a realidade se refazendo diante de mim. Ela havia acabado de desligar a
televisão e correr para o quarto. Pelo menos eu agora teria um pouco de
tranquilidade. Levantei-me da poltrona, apaguei as luzes e deitei-me no sofá.
Queria poder fechar os olhos e não acordar nunca mais. O relacionamento chegara
definitivamente ao fim? Não era mais possível viver naquela situação, quando
ambos se agrediam, ambos diziam coisas com o único intuito de agredir. Houve
uma época de sonhos, em que apenas palavras de amor eram proferidas. É assim com
cada casal. Lembrei-me dos amigos que me disseram para ter cuidado. “Ela não me
parece confiável…”, disse-me um. “Ela é interesseira…”, disse-me outro. Também
fiquei contra a minha família, com quem ela rompeu ligações há alguns anos.
“Sinto muito por você, meu filho, mas é sua vida…”, disse-me minha mãe certa
vez. Desde que perdi o emprego, ela mudara, tornou-se fria, amargurada. As
primeiras frases de crítica logos se converteram em lições de moral, depois em
cobranças. As brigas eram consequências inequívocas. A separação era iminente,
pensei. Cansei de brigar.
Era alta madrugada e o sono
continuava distante de mim. De vez em quando eu levantava da cama, ia até a
cozinha, tomava um copo d’água e olhava o céu cinzento. Eu não gostava muito do
outono, era uma estação de indefinições. Quando o sono lhe falta, sobra
filosofia barata. Sentei-me perto de uma janela e tentei ver o céu, mas apenas gotas
desciam iluminadas pela luz oculta do luar. Senti uma pontada de dor na minha
nuca, que depois caminhou em direção à minha têmpora esquerda. “Maldita
enxaqueca”, pensei. Não havia nada melhor para piorar meu dia. Fiquei olhando
para o lado de fora na esperança que as coisas mudassem, que de repente eu
fechasse os olhos e tudo voltasse a ser como antes. Mas antes quando? Quando eu
fui feliz verdadeiramente pela última vez?
Coloquei o copo de água sobre a pia,
caminhei a passos lentos em direção à cama. O coração palpitava forte, uma
pequena tontura fez com que eu me apoiasse na parede do quarto. Todos os meus dias
agora são de fortes emoções, ri comigo mesmo. Em determinados momentos, é
importante que tenhamos senso de humor para rir de nossas maiores desgraças. Um
dia as coisas mudam, um dia tudo acaba. Afastei o lençol, arrumei o travesseiro
e me deitei. Ela dormia virada para o outro lado. Naquele momento ela não
parecia tão assustadora, era uma sombra da garota que foi um dia. Acariciei seu
rosto, seus cabelos cacheados. Por que ela não mantinha sempre aquelas feições
plácidas, aquele semblante sereno. Dei um beijo suave em seu rosto e repousei
olhando para o teto. Não mais chovia. Uma pequena onda de calor começava a se
formar. Senti meu coração palpitar mais forte. A dor de cabeça aumentou
assustadoramente. De repente me dei conta que algo de errado estava acontecendo
comigo. Gritei e o mundo no instante seguinte ficou sem luz.
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