Verão
Abri e fechei os olhos várias vezes.
O dia aos poucos foi sumindo de minha vista, uma escuridão tomando conta de
meus olhos. Uma brisa fresca e úmida, um pouco salgada. Não conseguia mais
enxergar o mar, pois o negrume que se formava me impedia de ver qualquer coisa.
Mal conseguia enxergar a areia branca sob meus pés. Nem conseguia enxergar a
garota que há pouco me inundara de expectativa e esperança de não estar sozinho
ali. Sem ter muito o que fazer, sentei-me no chão.
Dei por mim que era a primeira vez que
havia noite naquele local, o qual eu estava bem tentado de chamar de limbo, ou
até mesmo de paraíso. Estava certo que eu havia morrido e em breve seria
julgado por todos os meus pecados, e espero que também por meus acertos.
Tornei a fechar os olhos e o sono
veio rápido. Imagino que dias acordado, mesmo que em outra “dimensão”, possam
ainda trazer cansaço ao corpo. Esperava que o dia amanhecesse com respostas
para as tantas perguntas que a cada minuto surgiam. Foi uma noite tranquila e
silenciosa, apenas com a brisa náutica a refrescar os pensamentos. Não houve
sonho. Mas pensei, e se eu não estivesse morto, apenas sonhando? Seria estranho
lembrar de um sonho dentro de outro. Apenas um exemplo das tantas perguntas que
se formavam. Mas, naqueles poucos segundos que eu ainda tive de lucidez, o
principal questionamento era: ela estará aqui quando eu acordar?
Mal eu fechei os olhos e adormeci,
senti por trás das pálpebras um calor e luminosidade desconfortantes. Despertei
com raios solares incidindo bem no meu rosto. Pus a mão na frente para que a
cegueira passasse e minha vista se ajustasse ao novo dia que raiva. O sol
brilhava pouco acima do mar calmo no horizonte. Não havia aves nem nuvens no
céu, mas aquela paisagem era paradisíaca. O verdadeiro cartão-postal de um dia
de verão.
Levantei-me, sacodi a areia do corpo
e principiei a caminhar. A faixa de terra era de se perder de vista. Atrás de
mim estava a colina da qual eu descera no dia anterior. E se eu tornasse a
subir, será que tudo que eu vira, tornaria a aparecer? Céus multicores,
jardins, o vento frio? Bem, não queria voltar no tempo, assim, segui a adiante.
Caminhei por quase meio dia, pela
areia molhada, com pequenas ondas morrendo aos meus pés, cobrindo-os de espuma
branca. O sol subia lentamente. Diferentemente da caminhada anterior, meus pés
não se machucaram, as manchas de sangue foram lavadas pela água salgada e as
feridas curadas. Era como se meu corpo se regenerasse. Continuei a andar, mas
num compasso lento, aproveitando cada momento ali. Do meu lado esquerdo havia
ainda uma extensão de terra que terminava num paredão que subia a se perder de
vista. Alguns coqueiros altos completavam a paisagem, dando ares de decoração.
O sol ia alto, acima de minha
cabeça, o que presumi que pudesse já ser por volta do meio-dia, quando avistei,
metros a minha frente, uma pessoa. Ao apressar o passo, e me aproximar dela,
constatei que era a mesma garota do dia anterior. Ela estava sentada, olhando o
mar. O sol iluminava seus cabelos cor de ouro, sua pele alva rutilava. Mas ao chegar
mais perto, percebia que a moça não estava mais nua como ontem. Vestia o que
imaginei ser um biquíni, mas feito de um tecido que lembrava palha. Parei
diante dela. Ela desviou o olhar em minha direção. Tentei procurar palavras.
Não podia falar qualquer besteira. Será que a minha insegurança em vida eu
carreguei para a morte? O que dizer? Quando eu ia balbuciar qualquer coisa, ela
falou:
“Oi! Pensei que não iria falar
comigo…”
“Estava procurando as melhores
palavras”, respondi, meio sem pensar.
“E existem palavras certas? Por que
todos sempre têm que achar que existem palavras certas? Ou mesmo selecionar o
que dizer, ou o que não dizer.”
“Talvez para não falar algo do qual
possa se arrepender depois.”
“Mas aí a pessoa está deixando a
sinceridade de lado, arrumando uma personalidade que não é dela. Em algum
momento isto vai ser deixado de lado e a pessoa acaba revelando o seu
verdadeiro eu.”
“É… você tem razão…”
“Então, por que não ser verdadeiro
no primeiro momento?”
“Por que depois que você já conheceu
a pessoa, ela pode relevar qualquer mal dito futuro.”
Rimos os dois. Seu sorriso era
encantador.
“Você tem bons argumentos. Por que
não se senta? Estou cansada de ficar olhando para cima.”
Balancei a cabeça meio sem jeito e
agachei-me, sentando ao seu lado. Pude ver a tatuagem de flores que subia pelas
suas costas. Ela percebeu.
“Gostou?”
“Bastante!”, tinha que ser o mais
sincero possível. Mas também, não haveria razão de não ser. “Achei linda desde
a primeira vez que vi”, completei.
Ela corou um pouco e abriu novamente
seu sorriso largo. Virou-se um pouco para mostrar toda a extensão da imagem. Um
desenho extremamente cuidadoso e bem elaborado.
“Vi você ontem”, disse ela tornando
a se aprumar. “Por que não falou comigo?”
“Pensei que você fosse um delírio.
Ainda tentei te alcançar, mas era como se meus pés estivessem presos, ou que o
chão caminhasse a cada passo que eu dava, me afastando de você.”
“É… talvez não fosse para nós
conversarmos ontem…”
“E digamos…”, parei, procurando
encontrar as melhores palavras.
“Lá vem você pensando no que vai falar.
Por que não diz logo, sei que a pergunta já está aí.”
“Você, hein! Bem… na verdade… ontem
você estava mais à vontade… aproveitando essa praia deserta…”
Ela riu, tornou a ficar com
bochechas vermelhas, os olhos se fechando enquanto ria.
“Quer dizer que você me viu nua, não
é? Ficou espiando…”
Fiquei sem jeito, sem saber o que
falar. De repente eu me vi tentando me justificar, mas as palavras não
conseguiam deixar minha boca. Fui eu a corar dessa vez. Ela veio em meu
socorro, não se aguentando e deixando escapar uma gargalhada gostosa.
“Mas é muito bobo! Brinquei com
você… Por que todo homem se espanta com a nudez de uma mulher? Por que isso
mexe tanto com vocês? Ou melhor dizendo, por que sempre têm que levar isso para
o lado libidinoso?”
“Acho que é de nossa natureza.
Instinto talvez.”
“Homens, homens, homens… Mas eu
entendo vocês. E não critico! Não existe nada melhor do que um homem e uma
mulher juntos, se é que você me entende”, e ela piscou o olho para mim, e
continuou. “Mas, já respondendo uma possível próxima pergunta não formulada,
mas pensada, sua: gosto de ficar assim sempre que posso. Aqui descobri ser o
lugar ideal”, e ela fez uma pequena careta sorridente. “E aproveito pra
responder também a sua próxima pergunta que você não teria coragem de fazer:
por que não estou nua agora? Bem, porque você não daria a devida atenção a mim,
ficaria preocupado em olhar, digamos, outras partes… E não estaríamos tendo uma
conversa tão prazerosa e, fundamentalmente, sincera.”
“Você sabia que nos encontraríamos?
Você sabia que eu encontraria você?
“Ora! Como não?! Se estamos apenas
nós dois aqui. É meio óbvio, né?!”
Mais uma vez não nos seguramos e
rimos os dois, gargalhadas altas e francas. Ela falou sobre o tempo que estava
ali, que não saberia dizer quanto, que de repente acordou e começou a caminhar.
Não havia nada, absolutamente nada. Quase um infinito de desolação, disse.
“Pelo menos eu acordei no meio de
flores…”, comentei, interrompendo-a, mas logo me calando para que continuasse.
Eu gostava de ouvir sua voz, suas argumentações eram impressionantes. Cheguei a
comentar isso em outro momento em que ela fez uma pausa.
“Não me lembro bem, mas acho que já
me disseram isso. Não duvido que daqui a pouco você esteja me chamando de
arrogante, ou mesmo pedante.”
“Eu nunca diria isso…”
“Talvez não agora, mas quando você
não estiver mais tão encantado com a minha beleza. E nem adianta retrucar, sabe
que eu tenho razão. Muitas pessoas deixam de falar aquilo que sentem com medo
do receio do outro. Eu já lhe disse isso no começo dessa nossa conversar. Mas
isso não se aplica apenas a situações de paqueras. Na vida a gente aprende a
seguir a norma da boa convivência. Mentir o necessário para não magoar outras
pessoas…”
“E você é contra contar mentiras
necessárias, então? Mesmo que seja com o intuito de não magoar terceiros?”
“Pera aí…”, e ela riu, virando-se
pra mim, deixando de olhar o mar. Ela quase sempre falava olhando o horizonte.
“Também não sou nenhuma sem-noção. Eu digo que partilho da seguinte premissa:
sempre que possível, seja sincero.”
“Doa a quem doer…”
“Então, aí depende, é a gente que
julga isso.”
Ela voltou a falar do tempo que
estava ali. Do tempo que caminhou no meio de um deserto de areia, de sol
escaldante. Seus pés sangraram, não passou frio, mas sim muito calor. A
esperança de encontrar alguém é que a motivara a não desistir. Até que desceu
uma colina e encontrou a praia, e os dias passaram a correr normais: amanhecer,
entardecer, anoitecer. Talvez estivesse há mais de uma semana, perdera há muito
a noção de tempo. E ficou feliz em me ter encontrado, mas ficou com receio de
que eu pudesse trazer alguma notícia desabonadora.
“Confesso que pensei que você fosse
um tipo de guia, que confirmasse que eu havia morrido. Apesar de dizer sempre
que estava preparada para isso.”
“Eu pensei o mesmo de você, achei
que teria respostas…”
“Aqui o que mais fazemos é pensar,
refletir. Acho que nunca filosofei antes na vida… Nossa vida é tão corrida que
a gente esquece de parar e pensar em coisas abstratas.”
“Ajudaria a limpar nossas mentes…”
E continuamos a conversar enquanto o
tempo passava. Vimos o sol caminhar, num céu sem nuvens, indo deitar-se atrás
de nós. No horizonte, uma coloração avermelhada começava a se destacar. Aquele
dia estava terminando quase do mesmo jeito que começou. Era um dia de verão,
era mais um dia de verão. Uma brisa agradável soprava em nossas faces. As
dúvidas que eu tinha, e que descobri serem as mesmas dúvidas daquela misteriosa
mulher, praticamente tinham perdido a importância. A sua alegria sincera era
contagiante em tamanha intensidade que tornava pequeno qualquer outro
sentimento que não representasse um bom sentimento. E pela primeira vez, desde
que eu despertara naquele mundo, não me preocupei com o dia seguinte. Sabia que
a minha nova companheira continuaria a me fazer muito bem, independente do que
o futuro poderia nos reservar.
Estreitos raios de sol ainda nos
iluminavam quando ela segurou a minha mão e se levantou, puxando-me. Obedeci,
pois não via sentido em contrariá-la.
“Vamos caminhar um pouco”, ela
disse. “Ficamos tanto tempo sentado, que a perna ficou dormente.”
“Você é quem manda. Contigo eu vou
pra qualquer lugar…”
Ela abriu novamente um sorriso
iluminado pelo crepúsculo daquele paraíso. As ondas batiam em nossos pés. As espumas
faziam cócegas.
“Bobo!” E ela ficou séria de
repente. “E se a gente realmente tiver morrido?” Ela fez uma pausa, eu dei de
ombros. Ela continuou, puxando um sorriso um pouco mais discreto que o habitual:
“Bem, se estivermos mortos, paciência. Não quero mesmo lembrar o que passou.
Pode ser que minha vida não tenha valido tanto a pena.”
“E se estivermos sonhando?”
Indaguei, olhando fixamente para ela.
“Se estivermos sonhando? Hum… que
esse sonho dure um pouco mais então”
Gargalhamos os dois e seguimos
andando, ouvindo o marulhar das ondas do mar enquanto o sol se despedia de nós,
num espetáculo de cores quentes e vivas. Uma brisa úmida e fresca corria pela
praia, refrescando nossos corpos, amainando o calor e os nossos corações.
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