Olá pessoal,
Venho aqui, após um longo período de ausência, para dar uma notícia. Reuni, promovendo uma revisão textual, todos os contos publicados no blog. Todos os dez contos.
O resultado é o livro PRIMEIRAS ESTAÇÕES - CONTOS.
Para se tornar viável esta publicação, a mesma foi feita em uma editora virtual, a Bookess. A impressão de cada exemplar é sob demanda. Infelizmente isto tem um custo adicional. O valor é um pouco mais alto do que você encontraria em livros similares.
Assim, quem se interessar pode adquirir um exemplar diretamente no site da editora. São duas opções: a versão digital em pdf (R$ 11,86) e a versão impressa (R$ 39,74). Claro que indico a versão impressa pois existe a chance de eu poder autografá-la, e também o frete é grátis.
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De qualquer forma, agradeço a todos!
Cultura e Ciência
Um lugar para divulgar ciência e cultura, compartilhando informações e opiniões -

terça-feira, 23 de setembro de 2014
segunda-feira, 16 de dezembro de 2013
As estações - 4ª parte
Inverno
Caía uma chuva típica do mês de
junho, nos trópicos. Eram quatro horas da tarde, mas já era noite no céu.
Apesar do que o termômetro poderia indicar, o tempo estava mais quente, úmido.
Não se sentia nenhuma brisa. Mas talvez fosse o aglomerado de pessoas, ou mesmo
o trânsito intenso dos carros, que àquela hora, em plena sexta-feira, só
pensava em ir pra casa curtir o final de semana com suas famílias.
Eu caminhava entre a multidão,
segurando meu guarda-chuva com vigor, pois a chuva caía impiedosa. Uma chuva
vertical, de pingos-grossos. Não gostava de dias assim, dias de chuva. Nunca escondi
de ninguém minha preferências pelas estações mais ensolaradas, como a primavera,
o verão.
Parei
um pouco sob a proteção de uma marquise de lanchonete. Um pouco mais adiante
ficava uma faculdade. Olhei para o interior do estabelecimento, estava lotado.
Tornava-se refúgio de estudantes, de transeuntes, de pessoas como eu que só queriam
se abrigar da chuva. O ambiente, todavia, instigara meu estômago a reclamar a
falta de comida. Para sair mais cedo do trabalho, eliminei a etapa do almoço.
Até minutos atrás eu não sentia nada, mas naquele momento, só em pensar em
comida, só em lembrar que eu não havia almoçado, uma fraqueza tomou conta das
minhas pernas, uma zonzeira passou pela cabeça. Já que estava ali, não custava
parar uma meia hora para fazer um lanche. Fui ao balcão e pedi um salgado de
queijo e um suco de laranja.
Com a bandeja na mão, procurei um
local para me sentar. Corri os olhos por todo o espaço, tudo ocupado. Pouco
antes eu tinha visto uma mesa vazia. Agora nada. Andei ziguezagueando nos
espaços estreitos, até que vi uma pessoa acenando para mim. Mas não, não podia
ser, pois eu não conhecia ninguém por ali. Olhei à minha volta, mas nenhuma das
pessoas tinha a atenção daquela menina. Ela riu e apontou o dedo na minha
direção, indicando que era eu mesmo. Não tinha nada a perder, caminhei até ela.
“Oi”, disse ela, toda sorridente. “Senta!”
Obedeci, meio desconfiado. Não havia
como não me encantar com aquele sorriso, com aquela beleza exuberante.
“Era mesmo comigo que você estava
falando?”
“Oxe! Mas é claro que era com você.
Ia ser com mais quem?”
“Desculpe a indelicadeza, mas eu
conheço você e não estou lembrando, é isso?”
“Aff! Claro que não me conhece,
nunca fomos apresentados.” E ela estendeu a mão dizendo seu nome. Retribuí
dizendo-lhe o meu. E depois de uns poucos segundos, ela continuou. “Mas eu
conheço você!”
“Como?!”
“Bem, conhecer de vista, de ver
passar.” Não sei o que acontecia comigo, eu não conseguia tirar os olhos dela.
Era meio repentino tudo aquilo, estranho até certo ponto. De fato eu fazia
sempre aquele caminho para ir ao ponto de ônibus, todo dia. Mas saber que
alguém me via, que se lembrava de minha fisionomia, era um pouco demais. Não
pela singularidade do fato, muito pela completa incredulidade do mesmo. Era uma
garota linda, talvez no começo ainda da faculdade, e eu tinha pelo menos uns
bons anos de dianteira, e não era nenhum referência de beleza. Ela disse que me
via passar há muito tempo, sempre apressado, sério, sem olhar para os lados.
Fazia um curso de economia, porque queria um emprego no serviço público. Eu
disse que já havia me formado há um bom tempo, que tinha feito mestrado, que
estava começando a trabalhar numa grande empresa da minha área. E ficamos
conversando, nos conhecendo.
“Você é uma pessoa incrível”, eu
disse em um determinado momento, aproveitando uma pausa que se abriu entre nós.
“E incrível por quê? Sou absolutamente
normal.”
“Quem chamaria um completo entranho
para se sentar à mesa consigo?”
“Bem, isso lá é verdade. Mas eu
chamaria sim, se esse estranho fosse você.” E ela riu mais um pouco, ajeitando
seus cabelos castanhos, quase louros.
E continuamos a rir e a conversar
por um tempo indeterminado. Quando paramos, não por falta de assunto, foi
porque ela olhou as horas e viu que era bem tarde.
“Passamos mais de três horas aqui? Puxa,
o tempo voa! Mas também, quando a conversa é boa, o tempo se torna tão
irrelevante…”
“Fico feliz por você dizer isso.
Sempre me achei meio sem graça…”
“Hum… Quer ouvir elogio é, moço?” E
ela piscou o olho para mim. “Mas realmente preciso ir, estou na minha hora.
Meus pais vão me torrar o juízo por esse atraso.”
“E vamos nos ver outra vez?” Perguntei,
enquanto nos levantávamos.
“O que você acha?”
Ela caminhou na minha frente, até a
saída da lanchonete. A chuva havia passado. Observei-a por inteiro, finalmente.
Beleza singular! Ao descer o batente, sua blusa levantou um pouco na parte das
costas.
“Você tem uma tatuagem?”
Ela parou, virou-se para mim, sorriu
e balançou a cabeça afirmativamente. “São flores”, ela sussurrou.
E ela partiu, na direção oposta. Uma
onda de felicidade tomou conta de mim. Algo me dizia que eu iria reencontrá-la
muitas outras vezes.
* * *
Como deixá-la ir? Era impossível não
pedir que ficasse comigo o resto de nossa eternidade. Como implorar pela sua
companhia, sem me mostrar frágil, dependente? Desde que eu chegara àquele
lugar, as dúvidas iniciais, as inconstâncias do tempo… ela se tornara razão de
meu ser. E ao vê-la banhar-se nas águas do mar, sorridente, sabia que meu
destino e o dela estavam ligados de algum modo. Eu só me não lembrava se era
pelo antes ou pelo depois. Ela devia ter feito parte de minha vida, ou iria
fazer. Deitei-me sobre a areia, olhando o sol que ia alto. Fechei os olhos. E
se eu tivesse que escolher? E se eu tivesse que optar entre estar morto e estar
sonhando? Parecia não haver dúvida. Eu queria passar o resto de minha existência
com ela.
Acordei com pingos de água no meu
rosto. Abri os olhos e ela me beijou. Um beijo terno, um beijo de amor.
“Amor, está na hora…”
Indaguei, curioso.
“Na hora de quê?”
“Está na hora de a gente acordar…”
“Era um sonho então?”, perguntei,
com o coração apertado.
“Um sonho que a gente construiu
juntos.”
“Mas foi tão pouco tempo, temos
tanto ainda pra viver… Não quero que você me deixe…”
“Mas não sou eu que vou te deixar… é
você!”
Sentamo-nos lado a lado, como da
primeira vez que conversamos.
“Engraçado, sabe, a gente nunca sabe
o que pode acontecer com a gente ao virar uma esquina, ou mesmo ao descer uma
colina.”
“Essa é a beleza da vida.”
“Por que você esperou para falar
comigo aqui? Um completo estranho…”
“Você tem razão… eu não falaria com
um completo estranho, a não ser que esse estranho fosse você…”
De repente tudo ficou claro na minha
mente, uma tempestade de lembranças me inundou por completo. Tudo se formava,
se montava diante dos meus olhos. Ela não era uma estranha, nunca foi. Eu a
conhecia! Eu a conheci muito anos atrás. Meu rosto se tornou lívido.
“Vejo que você lembrou tudo. Que
bom! Às vezes a gente precisa de coisas novas para enxergar aquilo que é
antigo.”
“Eu nunca deixei de amar você…” Eu
disse, subitamente.
“E você acha que eu deixei?”
“Você mudou tanto…”
“São as escolhas que fazemos que nos
mudam. Mas quem sabe a vida não nos dá uma chance de voltarmos a ser o que
éramos?”
“E você acha que é possível?”
“Tudo nesta vida é possível, basta a
gente querer… Mas, agora está na hora…”
“Então tudo não passou de um sonho?”
“Você tem o poder de escolher…” E
ela me beijou suavemente nos lábios. Seu perfume me inebriou. E o sol
desapareceu diante dos meus olhos.
*
* *
Consegui abrir os olhos. Minha
cabeça doía, como se uma espada a traspassasse. Lágrimas brotavam dos meus
olhos, a respiração difícil, entrecortada. Virei-me de lado. Pude ainda contemplá-la
dormindo, pela luz do luar. Sua tatuagem, de flores vermelhas, parecia ficar ainda mais bela sob aquela iluminação tão
especial. Uma nova pontada me fez dar outro grito e ela despertou assustada.
Olhou-me com aquele jeito doce e meigo, mas ao perceber que eu não estava bem,
ficou apavorada.
“Meu amor, que aconteceu? Que você
está sentindo? Vou ligar para a emergência!”
Tentei, mas não consegui falar, a
dor era insuportável.
Ela começou a chorar e a me pedir
perdão. Eu tentei sorrir, acariciei seus cabelos. Mesmo com a dor, eu pensei
como a felicidade era algo utópico. Na vida lutamos dia a dia para se chegar
até ela. Dias de alegria, dias de tristeza. Quanto vale a pena esse embate
diário. Às vezes o corpo cansa, às vezes a própria vida cansa.
Ela ficou junto de mim, segurando
minha mão. Tentei falar.
“Perdão…”
“Perdão pelo quê? Não tem o que
perdoar…”
“Perdão por não ter feito você mais
feliz…”
“Bobo…” ela sorriu, com lágrimas nos
olhos. “Você me fez a mulher mais feliz do mundo!”
Acariciei seu rosto. Ela me beijou
suavemente nos lábios. Era ela novamente, a mesma garota que um dia conheci
numa lanchonete. A angústia que há muito eu vinha sentindo sumiu. Eu tinha meu
grande amor de volta. Sorri. Seu perfume me inebriou. E a vida desapareceu
diante dos meus olhos.
Há estações e estações. A primavera
e o verão podem representar o nascimento, a vida. O outono e o inverno, por sua
vez, o fim de um ciclo. A vida é assim mesmo, vida e morte, num ciclo
interminável. Um brigando com o outro, sem vencedores.
quarta-feira, 6 de novembro de 2013
As estações - 3ª parte
Verão
Abri e fechei os olhos várias vezes.
O dia aos poucos foi sumindo de minha vista, uma escuridão tomando conta de
meus olhos. Uma brisa fresca e úmida, um pouco salgada. Não conseguia mais
enxergar o mar, pois o negrume que se formava me impedia de ver qualquer coisa.
Mal conseguia enxergar a areia branca sob meus pés. Nem conseguia enxergar a
garota que há pouco me inundara de expectativa e esperança de não estar sozinho
ali. Sem ter muito o que fazer, sentei-me no chão.
Dei por mim que era a primeira vez que
havia noite naquele local, o qual eu estava bem tentado de chamar de limbo, ou
até mesmo de paraíso. Estava certo que eu havia morrido e em breve seria
julgado por todos os meus pecados, e espero que também por meus acertos.
Tornei a fechar os olhos e o sono
veio rápido. Imagino que dias acordado, mesmo que em outra “dimensão”, possam
ainda trazer cansaço ao corpo. Esperava que o dia amanhecesse com respostas
para as tantas perguntas que a cada minuto surgiam. Foi uma noite tranquila e
silenciosa, apenas com a brisa náutica a refrescar os pensamentos. Não houve
sonho. Mas pensei, e se eu não estivesse morto, apenas sonhando? Seria estranho
lembrar de um sonho dentro de outro. Apenas um exemplo das tantas perguntas que
se formavam. Mas, naqueles poucos segundos que eu ainda tive de lucidez, o
principal questionamento era: ela estará aqui quando eu acordar?
Mal eu fechei os olhos e adormeci,
senti por trás das pálpebras um calor e luminosidade desconfortantes. Despertei
com raios solares incidindo bem no meu rosto. Pus a mão na frente para que a
cegueira passasse e minha vista se ajustasse ao novo dia que raiva. O sol
brilhava pouco acima do mar calmo no horizonte. Não havia aves nem nuvens no
céu, mas aquela paisagem era paradisíaca. O verdadeiro cartão-postal de um dia
de verão.
Levantei-me, sacodi a areia do corpo
e principiei a caminhar. A faixa de terra era de se perder de vista. Atrás de
mim estava a colina da qual eu descera no dia anterior. E se eu tornasse a
subir, será que tudo que eu vira, tornaria a aparecer? Céus multicores,
jardins, o vento frio? Bem, não queria voltar no tempo, assim, segui a adiante.
Caminhei por quase meio dia, pela
areia molhada, com pequenas ondas morrendo aos meus pés, cobrindo-os de espuma
branca. O sol subia lentamente. Diferentemente da caminhada anterior, meus pés
não se machucaram, as manchas de sangue foram lavadas pela água salgada e as
feridas curadas. Era como se meu corpo se regenerasse. Continuei a andar, mas
num compasso lento, aproveitando cada momento ali. Do meu lado esquerdo havia
ainda uma extensão de terra que terminava num paredão que subia a se perder de
vista. Alguns coqueiros altos completavam a paisagem, dando ares de decoração.
O sol ia alto, acima de minha
cabeça, o que presumi que pudesse já ser por volta do meio-dia, quando avistei,
metros a minha frente, uma pessoa. Ao apressar o passo, e me aproximar dela,
constatei que era a mesma garota do dia anterior. Ela estava sentada, olhando o
mar. O sol iluminava seus cabelos cor de ouro, sua pele alva rutilava. Mas ao chegar
mais perto, percebia que a moça não estava mais nua como ontem. Vestia o que
imaginei ser um biquíni, mas feito de um tecido que lembrava palha. Parei
diante dela. Ela desviou o olhar em minha direção. Tentei procurar palavras.
Não podia falar qualquer besteira. Será que a minha insegurança em vida eu
carreguei para a morte? O que dizer? Quando eu ia balbuciar qualquer coisa, ela
falou:
“Oi! Pensei que não iria falar
comigo…”
“Estava procurando as melhores
palavras”, respondi, meio sem pensar.
“E existem palavras certas? Por que
todos sempre têm que achar que existem palavras certas? Ou mesmo selecionar o
que dizer, ou o que não dizer.”
“Talvez para não falar algo do qual
possa se arrepender depois.”
“Mas aí a pessoa está deixando a
sinceridade de lado, arrumando uma personalidade que não é dela. Em algum
momento isto vai ser deixado de lado e a pessoa acaba revelando o seu
verdadeiro eu.”
“É… você tem razão…”
“Então, por que não ser verdadeiro
no primeiro momento?”
“Por que depois que você já conheceu
a pessoa, ela pode relevar qualquer mal dito futuro.”
Rimos os dois. Seu sorriso era
encantador.
“Você tem bons argumentos. Por que
não se senta? Estou cansada de ficar olhando para cima.”
Balancei a cabeça meio sem jeito e
agachei-me, sentando ao seu lado. Pude ver a tatuagem de flores que subia pelas
suas costas. Ela percebeu.
“Gostou?”
“Bastante!”, tinha que ser o mais
sincero possível. Mas também, não haveria razão de não ser. “Achei linda desde
a primeira vez que vi”, completei.
Ela corou um pouco e abriu novamente
seu sorriso largo. Virou-se um pouco para mostrar toda a extensão da imagem. Um
desenho extremamente cuidadoso e bem elaborado.
“Vi você ontem”, disse ela tornando
a se aprumar. “Por que não falou comigo?”
“Pensei que você fosse um delírio.
Ainda tentei te alcançar, mas era como se meus pés estivessem presos, ou que o
chão caminhasse a cada passo que eu dava, me afastando de você.”
“É… talvez não fosse para nós
conversarmos ontem…”
“E digamos…”, parei, procurando
encontrar as melhores palavras.
“Lá vem você pensando no que vai falar.
Por que não diz logo, sei que a pergunta já está aí.”
“Você, hein! Bem… na verdade… ontem
você estava mais à vontade… aproveitando essa praia deserta…”
Ela riu, tornou a ficar com
bochechas vermelhas, os olhos se fechando enquanto ria.
“Quer dizer que você me viu nua, não
é? Ficou espiando…”
Fiquei sem jeito, sem saber o que
falar. De repente eu me vi tentando me justificar, mas as palavras não
conseguiam deixar minha boca. Fui eu a corar dessa vez. Ela veio em meu
socorro, não se aguentando e deixando escapar uma gargalhada gostosa.
“Mas é muito bobo! Brinquei com
você… Por que todo homem se espanta com a nudez de uma mulher? Por que isso
mexe tanto com vocês? Ou melhor dizendo, por que sempre têm que levar isso para
o lado libidinoso?”
“Acho que é de nossa natureza.
Instinto talvez.”
“Homens, homens, homens… Mas eu
entendo vocês. E não critico! Não existe nada melhor do que um homem e uma
mulher juntos, se é que você me entende”, e ela piscou o olho para mim, e
continuou. “Mas, já respondendo uma possível próxima pergunta não formulada,
mas pensada, sua: gosto de ficar assim sempre que posso. Aqui descobri ser o
lugar ideal”, e ela fez uma pequena careta sorridente. “E aproveito pra
responder também a sua próxima pergunta que você não teria coragem de fazer:
por que não estou nua agora? Bem, porque você não daria a devida atenção a mim,
ficaria preocupado em olhar, digamos, outras partes… E não estaríamos tendo uma
conversa tão prazerosa e, fundamentalmente, sincera.”
“Você sabia que nos encontraríamos?
Você sabia que eu encontraria você?
“Ora! Como não?! Se estamos apenas
nós dois aqui. É meio óbvio, né?!”
Mais uma vez não nos seguramos e
rimos os dois, gargalhadas altas e francas. Ela falou sobre o tempo que estava
ali, que não saberia dizer quanto, que de repente acordou e começou a caminhar.
Não havia nada, absolutamente nada. Quase um infinito de desolação, disse.
“Pelo menos eu acordei no meio de
flores…”, comentei, interrompendo-a, mas logo me calando para que continuasse.
Eu gostava de ouvir sua voz, suas argumentações eram impressionantes. Cheguei a
comentar isso em outro momento em que ela fez uma pausa.
“Não me lembro bem, mas acho que já
me disseram isso. Não duvido que daqui a pouco você esteja me chamando de
arrogante, ou mesmo pedante.”
“Eu nunca diria isso…”
“Talvez não agora, mas quando você
não estiver mais tão encantado com a minha beleza. E nem adianta retrucar, sabe
que eu tenho razão. Muitas pessoas deixam de falar aquilo que sentem com medo
do receio do outro. Eu já lhe disse isso no começo dessa nossa conversar. Mas
isso não se aplica apenas a situações de paqueras. Na vida a gente aprende a
seguir a norma da boa convivência. Mentir o necessário para não magoar outras
pessoas…”
“E você é contra contar mentiras
necessárias, então? Mesmo que seja com o intuito de não magoar terceiros?”
“Pera aí…”, e ela riu, virando-se
pra mim, deixando de olhar o mar. Ela quase sempre falava olhando o horizonte.
“Também não sou nenhuma sem-noção. Eu digo que partilho da seguinte premissa:
sempre que possível, seja sincero.”
“Doa a quem doer…”
“Então, aí depende, é a gente que
julga isso.”
Ela voltou a falar do tempo que
estava ali. Do tempo que caminhou no meio de um deserto de areia, de sol
escaldante. Seus pés sangraram, não passou frio, mas sim muito calor. A
esperança de encontrar alguém é que a motivara a não desistir. Até que desceu
uma colina e encontrou a praia, e os dias passaram a correr normais: amanhecer,
entardecer, anoitecer. Talvez estivesse há mais de uma semana, perdera há muito
a noção de tempo. E ficou feliz em me ter encontrado, mas ficou com receio de
que eu pudesse trazer alguma notícia desabonadora.
“Confesso que pensei que você fosse
um tipo de guia, que confirmasse que eu havia morrido. Apesar de dizer sempre
que estava preparada para isso.”
“Eu pensei o mesmo de você, achei
que teria respostas…”
“Aqui o que mais fazemos é pensar,
refletir. Acho que nunca filosofei antes na vida… Nossa vida é tão corrida que
a gente esquece de parar e pensar em coisas abstratas.”
“Ajudaria a limpar nossas mentes…”
E continuamos a conversar enquanto o
tempo passava. Vimos o sol caminhar, num céu sem nuvens, indo deitar-se atrás
de nós. No horizonte, uma coloração avermelhada começava a se destacar. Aquele
dia estava terminando quase do mesmo jeito que começou. Era um dia de verão,
era mais um dia de verão. Uma brisa agradável soprava em nossas faces. As
dúvidas que eu tinha, e que descobri serem as mesmas dúvidas daquela misteriosa
mulher, praticamente tinham perdido a importância. A sua alegria sincera era
contagiante em tamanha intensidade que tornava pequeno qualquer outro
sentimento que não representasse um bom sentimento. E pela primeira vez, desde
que eu despertara naquele mundo, não me preocupei com o dia seguinte. Sabia que
a minha nova companheira continuaria a me fazer muito bem, independente do que
o futuro poderia nos reservar.
Estreitos raios de sol ainda nos
iluminavam quando ela segurou a minha mão e se levantou, puxando-me. Obedeci,
pois não via sentido em contrariá-la.
“Vamos caminhar um pouco”, ela
disse. “Ficamos tanto tempo sentado, que a perna ficou dormente.”
“Você é quem manda. Contigo eu vou
pra qualquer lugar…”
Ela abriu novamente um sorriso
iluminado pelo crepúsculo daquele paraíso. As ondas batiam em nossos pés. As espumas
faziam cócegas.
“Bobo!” E ela ficou séria de
repente. “E se a gente realmente tiver morrido?” Ela fez uma pausa, eu dei de
ombros. Ela continuou, puxando um sorriso um pouco mais discreto que o habitual:
“Bem, se estivermos mortos, paciência. Não quero mesmo lembrar o que passou.
Pode ser que minha vida não tenha valido tanto a pena.”
“E se estivermos sonhando?”
Indaguei, olhando fixamente para ela.
“Se estivermos sonhando? Hum… que
esse sonho dure um pouco mais então”
Gargalhamos os dois e seguimos
andando, ouvindo o marulhar das ondas do mar enquanto o sol se despedia de nós,
num espetáculo de cores quentes e vivas. Uma brisa úmida e fresca corria pela
praia, refrescando nossos corpos, amainando o calor e os nossos corações.
domingo, 3 de novembro de 2013
As Estações - 2ª parte
Outono
Era outono. Não se viam flores
castanhas espalhadas pelo chão, nas calçadas e ruas, como em tantas paisagens
descritas nos livros, nos filmes. Simplesmente fazia menos calor, chovia um
pouco mais.
Caminhei
lentamente ao final daquela tarde. Não queria voltar para casa. Não queria
enfrentar minha vida por mais um dia que fosse. Não queria, mas tinha de
enfrentar os problemas, pois eles não fugiam de mim. Entre a expectativa e
frustração, a linha é muito tênue…
Algumas gotas principiaram a cair.
As nuvens não eram densas, não seria chuva forte, mas foi o suficiente para
distrair meus pensamentos por uma fração de segundos. Um vento frio correu pela
rua balançando a copa de algumas árvores mais adiante. Continuei a caminhada o
mais lentamente possível, enquanto a camisa molhava cada vez mais. Ao parar
diante do portão, respirei fundo, olhei o céu mais uma vez. As gotas caíam uma
a uma, em câmera lenta, finas e inofensivas.
Ouvi barulho na cozinha quando pus
minha pasta sobre a cadeira. Ela percebeu que eu havia chegado e apareceu.
“Chegou tarde”, ela disse. “Outra
vez…”, complementou laconicamente, no que olhei pela janela e ainda podia
contemplar o crepúsculo.
Não respondi de imediato. Sentei no
sofá, pegando o controle da televisão. Não queria outra discussão, outra
disputa de argumentos sem sentido. Como eu queria morrer naquele momento,
talvez me livrasse dos tormentos e infortúnios da vida. Não passava nada de
interessante na TV e desliguei-a, para em seguida ir-me arrastando lentamente
para o quarto, onde poderia tomar um banho e me desligar por alguns instantes
do mundo. Meus pés doíam e quando tirei os sapatos, uma onda de alívio surgiu
como um bálsamo restaurador. Tranquei-me no banheiro aproveitando para contemplar
minha fisionomia cansada. Observei o exato momento em que meu olhos foram-se
avermelhando, a angústia crescer no meu peito e lágrimas recorrentes brotarem.
“Sou um fracasso!”
O jantar estava servido e comi
sozinho. Ela estava na sala, assistindo às novelas. Sentei-me na poltrona e
permanecemos em silêncio por alguns minutos. No intervalo ela abaixou o volume,
virou-se para mim e perguntou:
“Conseguiu algo?”
Era o prelúdio para uma nova
discussão. Minhas opções eram continuar em silêncio ou responder e esperar as
consequências. Optei pela segunda.
“Não… não consegui nada.”
“Se você se esforçasse um pouco
mais…”
Eu sabia que a conversa em tom
baixo, polida, não duraria muito. Ela sabia que eu não aguentaria calado.
Depois de alguns anos de convivência, saber os defeitos de cada um se mostrava
mais importante do que as próprias qualidades. O problema é que ela sabia
explorar os meus muito bem.
“Não acredito que teremos outra vez
a mesma discussão.”
“Não deveríamos, não é?”, retrucou
ela. “Mas estou cansada de sustentar você e não ver você se empenhando.”
“Faz três semanas que eu saio
todos os dias às seis da manhã, volto às seis da noite, passo o tempo todo
andando, ouvindo desculpas esfarrapadas, muitas vezes sendo humilhado… Você
acha que é fácil pra mim?”
Ela respirou fundo e continuou.
“Não digo que você não está
procurando, mas acho que você não vai nos lugares certos. Quem está
desempregado, não pode escolher… ou estou errada?”
“Sinceramente? Você sabe muito bem
que não é assim que a coisa funciona. Tantos anos de estudo… diploma… pra ficar
aceitando qualquer coisa? Você se sujeitaria a isso por acaso?”
“Meu emprego é estável, não depende
do meu humor…”
“Não me venha com essa, sabe que não
fui demitido por incompetência minha.”
“Mas brigou com o seu chefe, brigou
com quem mandava e tinha poder sobre você!”
“Não vou voltar a esse assunto. Acho
que já esgotamos essa questão muito tempo atrás. Toda vez que começamos essa
discussão, o assunto volta. Você sempre usa isso pra me menosprezar…”
“Não seja hipócrita! Não se faça de
inocente! Você é acomodado, preguiçoso!”
“Chega! Já cansei disso!… cansei de
você sempre me apontar os defeitos. Nunca neguei nenhum deles, mas sabe muito
bem que eu mudei, que eu estava muito bem no trabalho, crescendo… Mas aquele
filho da puta armou um esquema sujo! Não quis participar e ele ferrou comigo.
Ou você queria que eu fosse desonesto?”
Ela se calou por um tempo,
procurando palavras. Meu coração batia forte no peito. Uma discussão sempre me
abalava. Por mais que eu tentasse me conter, os ânimos se exaltavam. E também
as palavras dela atingiam em cheio a minha alma. Me sentia um lixo…
“Não ponha palavras na minha boca!”,
retrucou ela. “É lógico que você não deveria ter se envolvido. Eu falo no
geral, você sempre sonha, esquece da realidade às vezes… Esquece que tem
família.”
“Não seja injusta! Nunca faltou nada
aqui, nunca! E quando você me conheceu, eu trabalhava, enquanto você terminava
sua faculdade…”
Ela calou-se. O roteiro era sempre o
mesmo, cada discussão, cada argumento seguindo a ordem esperada, dia após dia.
Ficaríamos longos minutos debatendo de quem era a culpa do meu fracasso.
Difícil era quando a mentira começava a se tornar verdade. E cada vez que me
era fechada uma porta, eu me questionava se ela não teria razão. Naquele
momento eu ainda tinha forças de combater as agressões, mas temia que num
futuro breve, eu já as aceitasse e assumisse como fato confirmado.
Aos poucos os sons foram retornando
e a realidade se refazendo diante de mim. Ela havia acabado de desligar a
televisão e correr para o quarto. Pelo menos eu agora teria um pouco de
tranquilidade. Levantei-me da poltrona, apaguei as luzes e deitei-me no sofá.
Queria poder fechar os olhos e não acordar nunca mais. O relacionamento chegara
definitivamente ao fim? Não era mais possível viver naquela situação, quando
ambos se agrediam, ambos diziam coisas com o único intuito de agredir. Houve
uma época de sonhos, em que apenas palavras de amor eram proferidas. É assim com
cada casal. Lembrei-me dos amigos que me disseram para ter cuidado. “Ela não me
parece confiável…”, disse-me um. “Ela é interesseira…”, disse-me outro. Também
fiquei contra a minha família, com quem ela rompeu ligações há alguns anos.
“Sinto muito por você, meu filho, mas é sua vida…”, disse-me minha mãe certa
vez. Desde que perdi o emprego, ela mudara, tornou-se fria, amargurada. As
primeiras frases de crítica logos se converteram em lições de moral, depois em
cobranças. As brigas eram consequências inequívocas. A separação era iminente,
pensei. Cansei de brigar.
Era alta madrugada e o sono
continuava distante de mim. De vez em quando eu levantava da cama, ia até a
cozinha, tomava um copo d’água e olhava o céu cinzento. Eu não gostava muito do
outono, era uma estação de indefinições. Quando o sono lhe falta, sobra
filosofia barata. Sentei-me perto de uma janela e tentei ver o céu, mas apenas gotas
desciam iluminadas pela luz oculta do luar. Senti uma pontada de dor na minha
nuca, que depois caminhou em direção à minha têmpora esquerda. “Maldita
enxaqueca”, pensei. Não havia nada melhor para piorar meu dia. Fiquei olhando
para o lado de fora na esperança que as coisas mudassem, que de repente eu
fechasse os olhos e tudo voltasse a ser como antes. Mas antes quando? Quando eu
fui feliz verdadeiramente pela última vez?
Coloquei o copo de água sobre a pia,
caminhei a passos lentos em direção à cama. O coração palpitava forte, uma
pequena tontura fez com que eu me apoiasse na parede do quarto. Todos os meus dias
agora são de fortes emoções, ri comigo mesmo. Em determinados momentos, é
importante que tenhamos senso de humor para rir de nossas maiores desgraças. Um
dia as coisas mudam, um dia tudo acaba. Afastei o lençol, arrumei o travesseiro
e me deitei. Ela dormia virada para o outro lado. Naquele momento ela não
parecia tão assustadora, era uma sombra da garota que foi um dia. Acariciei seu
rosto, seus cabelos cacheados. Por que ela não mantinha sempre aquelas feições
plácidas, aquele semblante sereno. Dei um beijo suave em seu rosto e repousei
olhando para o teto. Não mais chovia. Uma pequena onda de calor começava a se
formar. Senti meu coração palpitar mais forte. A dor de cabeça aumentou
assustadoramente. De repente me dei conta que algo de errado estava acontecendo
comigo. Gritei e o mundo no instante seguinte ficou sem luz.
domingo, 20 de outubro de 2013
As Estações - 1ª parte
Primavera
Eu fechei os olhos e entrei numa
escuridão sem fim. Quase pude sentir o último sopro de ar deixar meus pulmões.
Sem dor, sem mistério. Apenas um leve adormecer de pernas, braços. Um sono que
me tomou completamente.
A escuridão aos poucos se foi
desfazendo e uma súbita claridade tomou conta de mim. Mal consegui abrir os
olhos, ofuscado. Estaria morto ou tudo não passava de um sonho? Não me lembrava
de como chegara até ali. Deitei-me cedo, com uma dor de cabeça fortíssima, após
uma discussão violenta. E de repente, a dor sumiu e fez-se paz à minha volta.
Um sentimento de alívio indescritível. Estava agora no meio de um campo de
flores, imenso. Lírios amarelos, pressupus, perpassando minhas mãos sobre eles.
Um campo vastíssimo. Caminhei entre as flores rumo ao desconhecido. Uma brisa
fria chocava-se contra meu rosto, uma brisa diferente, cortante. Foi quando me
dei conta de que vestia apenas uma calça surrada, e tinha o peito e braços nus.
À medida que eu avançava, o vento frio tornava-se mais dilacerante.
A paisagem não mudava. Não havia
outra coisa no meu raio de visão que não as flores amarelas e um céu infinito
em tons acobreados. Não havia nuvens. Não havia estrelas. Não parecia dia, ou
noite. Onde eu estava? Morto, sonhando? Por que naquele momento os pensamentos
eram tão obscuros, obtusos? Os meus pés descalços sentiam cada grão de areia,
cada pequena pedra, a cada passada. Um filete de suor descia por minhas
têmporas, contornando as bochechas, deslizando sobre o pescoço, indo
misturar-se a todas as outras gotas de suor que brotavam de minhas costas e
peito.
Devia estar caminhando há
aproximadamente duas horas, e a não alteração da paisagem me angustiava mais a
cada passo. O que mudava era o sopro do vento, cada vez mais forte, cada vez
mais frio. Onde estavam as minhas roupas, o meu agasalho. Quando olhei para o
céu, percebi a mudança do marrom avermelhado para o branco, mas não eram as nuvens,
apenas o céu que se tornava branco. Branco gelo, branco neve. Desci a vista
para o terreno e as flores amarelas tornaram-se vermelhas, mas ainda eram lírios.
De repente um uivo ecoou no espaço vazio à minha frente, mas não o uivo de um
animal, e sim o uivo do vento, fazendo curvas, rodopios. As flores bailavam
diante de mim. Metros adiante eu percebi finalmente uma mudança na paisagem.
Principiei uma corrida alucinada. Os meus pés doíam, quiçá estivessem
sangrando. Que importava, eu estava morto! Foi quando a areia virou rocha sob
meus pés feridos e um precipício se materializou a poucos metros, fazendo com que
eu brecasse assustado. O infinito estava diante dos meus olhos. Olhei para
baixo, tiritando de frio, ofegante de cansaço, mas tomado de uma curiosidade a
qual eu desconhecia possuir. Inclinei a cabeça na beirada e um zunido em meus
ouvidos deixou-me tonto. O impulso de sentar-me foi imediato. Não havia nada
adiante, o céu branco tornava-se argênteo e por fim um negrume se construía e
preenchia o restante da visão. Os braços cruzados sobre meu peito eram uma
tentativa inútil de proteção contra a friagem. E se eu me jogasse dali? Se
estivesse dormindo, acordaria, se estivesse morto, nada mudaria. Mas parecia
que minha falta de coragem em vida perpetuava na minha morte.
Já fazia muitas horas que eu me via
ali sentado, olhando o nada, sentindo um completo vazio de pensamentos e
emoções. As lembranças chegavam em lufadas, cortantes, como a aura fria que
soprava, vezes forte, vezes fraca, e que parecia ser a única coisa imutável
naquele lugar. Lágrimas vez e outra brotavam e secavam antes mesmo de deixarem
os olhos. Olhei o sangue seco e preto na planta dos meus pés. Seria ali o
purgatório, o local para se avaliar os erros e acertos em vida? Será que minha
descrença em algo maior me fez cair numa zona morta, sem companhia. E tanto
medo eu tive da solidão que agora eu passaria sozinho a eternidade? O céu não
estava mais acobreado, ou branco, ou negro. Lâminas alaranjadas, tons
vermelhos, pinceladas púrpuras mudavam o aspecto. Era bonito de se ver. Olhei os
lírios atrás de mim e as flores mudavam de cores também, como se fossem um
reflexo, ou melhor, a cor complementar do que estava acima delas.
Não anoitecia, não amanhecia. Mas ao
meu contar do que seria o terceiro dia, surgiu uma borboleta solitária
sobrevoando o campo de flores. Tinha as asas pretas, brancas e laranjas, em
desenhos psicodélicos. Ela voou em minha direção e me ficou fazendo voltas até
pousar na beirada do precipício. Tive vontade de falar com ela, dizer “oi”. Talvez
eu estivesse ficando louco. Ela ficou parada um tempo e depois voou, sumindo
nas trevas daquele buraco sem fim. Senti minha alma sombria enquanto pensamentos
soturnos perpassavam dentro de mim. Talvez ali fosse um local para reflexão.
Tantos sempre quiseram saber o que havia depois da morte. Anjos, demônios, almas
vagando solitárias, espíritos de luz, talvez Deus. Eu nunca acreditei em nada.
Do pó viemos, ao pó voltaremos. Fato! E agora estou eu tendo o privilégio de
descobrir a tão pesquisada vida após a morte. Engraçada é a ironia por trás dos
feitos. E se eu não estivesse morto, apenas preso a um sonho sem fim, em coma,
sobre a cama num leito de hospital, com minha esposa e meus filhos chorando por
mim. Aquele pensamento me deixou ainda mais deprimido e a vontade de atirar-me
do infinito negro ganhava força. Queria poder chorar agora, mas as lágrimas há
muito haviam secado. Pobre alma a minha, pobre do meu espírito descrente.
Enquanto as horas passavam
incólumes, eu refletia, atento às mudanças de cores, do céu, das flores. De
repente uma música despertou-me de meu transe. Uma melodia lenta, cativante.
Virei-me na direção de onde vinham as notas e dirigi-me até elas. Uma estrada
abriu-se diante de meus olhos, um caminho para baixo, deixando as flores para
trás. Uma muralha começou a se erguer entre a pequena estrada, rochas
cristalinas, lâminas perfeitas, eu na verdade me precipitava para baixo, de
encontro ao escuro que há pouco contemplava do alto, para o mal… ou para o bem.
Mas não estava escuro, pelo contrário, a cada passo que eu dava, o mundo se
transformava. O céu tornara-se azul e algo que lembrava o sol materializava-se
aos poucos. O frio constante, ao qual eu já me havia acostumado, transformou-se
em calor. Quilômetros depois a estradinha findou e o chão de pedras virou um
chão de areia brancas. A música nem aumentava, tampouco diminuía. Era
conhecida, trouxe-me lembranças. Notas harmoniosas, singelas, agradáveis.
Enquanto caminhava tentei organizar aquelas memórias perdidas. Senti o chão
mudar outra vez, areia mais fina sob meus pés. Aos poucos a música foi sendo
oprimida pelo marulhar das ondas. E quando me dei conta, estava numa praia, as
ondas quebrando formando uma espuma branca que se espalhava por toda a extensão
visível. O sol surgiu forte, ofuscante e o mar alcançou meus pés. Senti a água
gélida da manhã. Seria manhã? O sol nascia no horizonte. Continuei caminhando,
sentindo a areia úmida sob meus pés e de quando em quando era alcançado por uma
onda mais arredia que se alongava na areia. Não escutava mais a música que por
horas ficara em meus ouvidos, agora apenas as ondas que se chocavam e morriam
na praia.
Não fazia ideia do tempo que estava
caminhando, o cenário não mudava. Mas agora o mundo parecia o mundo que eu
conhecia. Não havia mais um céu multicor, e o sol arqueava como esperado e
programado pela natureza. Haveria noite finalmente? Pois o sol começava a se
posicionar de meu lado esquerdo, enquanto eu caminhava para o que imaginava ser
o norte. A claridade do poente me encadeava e eu mal enxergava metros à minha
frente. Subitamente, um vulto se fez um pouco mais adiante de mim. Era uma
mulher, pela silhueta enegrecida pela sombra do crepúsculo. Apressei o passo
até ela. Eu não estava sozinho naquele lugar! Se eu estava morto, seria ela um
anjo a me guiar? Os cabelos esvoaçavam pela força do vento. Sua silhueta foi
tornando-se mais clara. Ela olhava o mar. Estando já bem próximo percebi que
estava nua. Parei instantaneamente, de certo modo chocado, ou atordoado, com
aquela imagem. Ela era linda. Tentei falar com ela, mas ela principiou a andar.
Caminhei mais rapidamente, e ainda assim não consegui alcançá-la. Contemplei suas curvas generosas. E
quando ela atravessava alguma faixa iluminada, percebi que era alva como as
espumas das ondas que quebravam na praia e tinha um balançado no jeito de andar
enlouquecedor. Seus cabelos bailavam ao vento, cabelos dourados. Havia uma
tatuagem, uma flor que brotava de suas nádegas perfeitas e rosadas. Brotava um
ramo e dele surgiam flores vermelhas que findavam no meio de suas costas. Nunca
vira algo mais belo. E ela era assustadoramente bela.
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