quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

A mulher dos meus sonhos - parte 1

Bem, conforme prometido, segue o início de um novo conto...



A mulher dos meus sonhos
  

            O dia amanheceu quieto. Havia um mistério pairando sobre tudo. Era daqueles dias de inverno, quando o sol não quer aparecer e as nuvens cobrem tudo, deixando o mundo soturno, uma atmosfera lúgubre que atinge todos os seres. Todos querem a solidão, todos querem os lençóis, inclusive o sol que se recusa a nos iluminar. O frio chega junto, o vento gélido entra devagar, congelando a alma e os corações. Os galhos retorcidos das velhas árvores agitam-se de maneira desorientada, formando um balé confuso e disperso. Aquele era, enfim, mais um dia de inverno.
            Acordei-me cedo, como de costume, já que o sono não me era tão companheiro. Ainda não havia dado seis horas e o domingo seria longo demais. Tomei um banho quente que me despertou. Forrei o estômago com café e torradas. Não havia ânimo para nada, eu não tinha ânimo, ninguém o teria.
            Sentei-me no sofá e li algumas páginas do jornal do dia anterior. Ouvi quando o jornaleiro atirou o jornal dominical no jardim. Em pouco tempo eu já havia passado a vista também no último.
            Resolvi recolher-me ao escritório. Sim, ele era o meu refúgio. Pequeno e simpático, arrumado segundo as minhas preferências. Havia uma escrivaninha, uma estante que chegava ao teto, abarrotada de livros, uma pequena mesa e no canto, o meu computador. Num local mais afastado e discreto, podia-se ver uma máquina de datilografar, onde eu escrevera as minhas primeiras histórias. Eu tinha muito carinho e sempre sentia uma grande emoção quando me permitia recordar. A nostalgia aflorava sempre que eu começava a ler os manuscritos, as minhas primeiras aventuras no mundo das letras. Havia um armário de ferro onde eu guardava todos os originais dos meus romances, as minhas crônicas, os meus contos e poesias. Em vinte e cinco anos de carreira eu havia conseguido uma vasta obra; embora o sucesso não tivesse batido à minha porta, a produção fora intensa. Os primeiros quinze anos foram escritos na velha máquina de teclas duras. Realmente o meu coração batia mais forte cada vez em que eu olhava mais detidamente.
            No momento, eu escrevia o meu décimo segundo romance e todos os dias, inclusive sábados e domingos, eu me enclausurava no escritório durante quase oito horas, intercaladas para rápidos lanches e o almoço.
            Passava de uma hora da tarde quando tocou o telefone da sala, antes de atendê-lo, olhei pela janela o sol que ia alto e pensei em como o tempo muda de humor rapidamente. Atendi quase no último disparo. Do outro lado, um grande amigo meu, Cláudio, talvez o último, tendo em vista a minha pouca sociabilidade. Disse que precisava falar urgentemente comigo. Marcamos num restaurante que ficava a poucos minutos de minha casa. Acabei gostando do telefonema, pois há alguns meses não o via, desde que comecei a escrever o novo livro. Estava também precisando de um descanso para os dedos e para a mente.
            Cheguei primeiro que ele no local combinado. Cláudio era um amigo dos velhos tempos, dos tempos de colégio, e foi um dos meus grandes incentivadores quando comecei na arte da escrita. Estava tão distraído que não o vi chegar. Demo-nos um longo abraço.
            — Quais são as novidades? — indaguei prontamente, assim que ele se sentou.
            — Ei, rapaz, espera um pouco, me deixa pedir logo uma cerveja!
            Quando o garçom deixou a garrafa sobre a mesa, ele falou:
            — Estou com problemas, Guto…
            — Problemas? Você sempre está com problemas! Defina o seu problema.
            Ele sorriu simplesmente, mas percebi uma estranheza no seu olhar. Um escritor acaba, muitas vezes, descobrindo as sutilezas dos sentimentos humanos: quando se está feliz, quando se está triste, quando os problemas são pessoais, quando são profissionais. Acabamos muitas vezes nos tornando psicólogos.
            — Os problemas são caseiros…
            — Tem brigado com Ana? Pensei que as dificuldades tinham sido superadas.
            — Não é bem isso…
            — E o que é? Apaixonou-se por outra mulher? — brinquei.
            — Exatamente…
            Naquele momento fez-se um silêncio mórbido e talvez nenhum de nós dois quisesse estar ali. Cláudio era um tanto maluco, por vezes irresponsável, mas eu sempre o tive como o mais fiel dos homens, até mais do que eu.
            — E que você está me dizendo, Cláudio? Como isso foi acontecer?
            Ele baixou a cabeça e sentiu que o reprovava. Quando a ergueu, vi os seus olhos vermelhos, as lágrimas prestes a desabar.
            — Eu juro que não procurei. Juro! Você sabe, Guto, que nesses anos de casamento, mesmo com todas as dificuldades, as divergências entre mim e Ana, nunca olhei para outra mulher. Só que dessa vez aconteceu, e foi mais forte, muito forte.
            — Me explica melhor essa história.
            Cláudio contou que conheceu Luana numa festa do banco onde ele trabalhava. Era uma mulher vistosa, de cabelos longos e lisos, castanho-claros, com um corpo invejável. Conheceram-se e ela, aos poucos, mostrou-se interessada nele. Segundo suas próprias palavras, era assustadoramente encantadora. Depois de três encontros sociais, aconteceu o primeiro beijo, ainda no trabalho. Ela então se confessou apaixonada por ele. Cláudio disse-me que ela tinha trinta anos, quinze anos mais nova que ele, o mesmo tempo que ele tinha de casamento. Ele concluiu dizendo que havia transado com ela no dia anterior.
            — Estou perdido! — desesperou-se.
            — O que pretende fazer?
            — Eu não sei, não faço idéia… Estou completamente apaixonado por Luana, completamente.
            — Cara, que situação! Eu não queria estar no seu lugar, não saberia o que fazer.
            Ele me olhou nos olhos e sorriu. Subitamente a névoa em seus olhos sumira, como havia sumido as nuvens carregadas da manhã.
            — Eu vou pedir o divórcio — revelou, pausadamente, serenamente.
            — Ficou maluco! Você tem filhos, não se pode deixar levar por uma aventura. Talvez ela nem goste de você de verdade, pode ser apenas um rompante.
            — Rompante ou não, eu não posso continuar assim! Eu sei que você vai me condenar, todos vão. Mas eu quero viver minha vida! Quero viver os momentos quando eles se apresentam diante de mim. Eu amo Luana e é isso o que importa.
            Fez-se novamente um longo silêncio, terminávamos nosso almoço.
            — Talvez você tenha razão, meu amigo. Às vezes deixamos passar os grandes momentos e não teremos como buscá-los de novo.
            Cláudio não falou mais nada, apenas concordou. Naquele momento ele estava feliz.

            A noite era completamente diferente e o céu brilhava, refletindo as luzes das tantas estrelas. Soprava uma brisa agradável que vinha do leste. Subi ao primeiro andar e permiti-me ficar na varanda observando as estrelas, a lua, sentindo aquele vento tão agradável assanhando-me os cabelos. Em minhas mãos eu tinha alguns papéis: era um conto que fora escrito vinte anos antes e que nunca fora lido por ninguém mais. Ao lado do título ‘A mulher dos meus sonhos’ estava escrito, em letras gigantes: não publicar! Li-o até a metade, conhecia bem a história. Algumas lágrimas amargas salgaram-me a boca. Apertei os papéis contra meu peito e fechei os olhos saudosos, tentando lembrar-me daquela época. Como a vida é engraçada, como as histórias se repetem…

Um comentário:

Márlon Soares disse...

"...como as histórias se repetem."

E repete mesmo. Somos todos uma raça de iguais? Até nas quedas e vitórias?

Abraço.