sábado, 3 de setembro de 2011

Há dez anos... - parte 1

Bem... o título não faz referências a memórias minhas, muito menos ao que aconteceu há dez anos. Trata-se de um conto. Dessa vez, mais água com açúcar (chega de assassinatos e psicopatas por um tempo). Espero que gostem!



Há dez anos…


            Eu caminhava lentamente observando o sol que se punha no horizonte... Os meus pensamentos voavam por entre as nuvens do largo céu que se escurecia tingido de um vermelho enegrecido e forte à medida que a grande bola de fogo tocava o oceano. Não entendia a razão daquela melancolia em plena tarde de outono. Meus pés sentiam a água que batia neles suavemente fazendo espuma e uma sensação prazerosa amainava o vazio que subitamente eu começava a sentir.
            Estava caminhando fazia mais de uma hora, como eu fazia em todo entardecer desde que eu mudara para aquela cidade. A solidão passara a ser companheira, eu aprendi a valorizar cada segundo da minha vida, cada momento e situação. O pior é a conclusão de que o tempo não volta atrás, e tudo aquilo que passou de bom ou de ruim, simplesmente passou. Não podemos controlar nosso destino. Eu não sei se a esta altura da vida eu deveria acreditar em destino, mas houve um tempo que sim, que eu acreditei. Gostaria de saber hoje, em que momento da vida eu deixei de ser feliz, ou qual foi o meu último momento pleno de felicidade. Tantas indagações que eu não sabia de onde elas brotavam, apenas brotavam.
            Sentei-me na areia e terminei de contemplar aquela maravilha da natureza. E como umas tantas outras vezes, eu chorei pensando como sou pequeno diante de tamanha plenitude, como se minha existência tivesse significado ou alguma razão. A vida é simplesmente assim, para se viver, para se arrepender, para se lembrar e ter a certeza de que somos apenas mais um, e que nossa principal missão é buscar a felicidade, a todo custo. Ou puramente fazer alguém feliz.
            Uma brisa muito fria despertou-me dos pensamentos e a noite chegara acompanhada de suas estrelas pulsando ardentes por atenção. Quantas pessoas no mundo as estavam olhando neste exato momento? Pensei então: eu era apenas mais um. Uma pontinha de paz pousou em meu peito e decidi que era hora de voltar para casa.
            A caminhada não levou mais que trinta minutos. Do portão, vi balançarem os dois coqueiros que servem de portal, envergando-se com o vento que gradativamente se fortalecia, se suas folhas formavam um balé não ensaiado. A casa estava toda escura, apenas a luar a iluminava. Bati a areia das pernas e entrei.
            Uma casa grande sem sentido de ser, sem vozes, sem movimentos, sem passos, vazia de corações. O destino que eu não acreditava levou-me até ela. Fama, fortuna, e ausência de felicidade. Todo dia eu lutava comigo mesmo para espantar maus pensamentos, meus pensamentos.
            Ouvi buzinas ao longe. Acabara de tomar banho e mal pude terminar de me vestir porque a buzina era insistente. Quando cheguei ao portão vi, apesar de ofuscado pelos faróis, o carro de meu irmão. Fazia pelo menos dois anos que não tinha contato com ele. Era a grande novidade dos últimos meses.
            – Pensei que não estivesse em casa, tentei ligar, mas ninguém atendeu – disse ele descendo e me abraçando forte, abraço de irmão.
            – Não estava em casa. Devia estar na praia.
            – Mas achei que estivesse trabalhando, e você trabalha em casa – disse após uma sonora gargalhada.
            – Quase sempre – respondi de forma polida, sem parecer rude.
            Entramos e ele deixou uma bolsa de viagem sobre o sofá. Meu único irmão, que já fora um grande amigo e confidente, mas que afastei de mim nas últimas décadas, como eu fizera com todos aqueles que me amaram, que me queriam bem.
            – E então, como vai o livro? Você está aqui para escrever não é?
            Assenti com a cabeça.
            – Eu li o último... Tinha um estilo um pouco diferente...
            – Eu sei... eu sei... Era péssimo. Acho que venho perdendo o jeito...
            – Cara, você não parece nada bem! – sussurrou ele. – Olha, vamos fazer o seguinte: saímos para jantar que eu estou faminto, a viagem foi longa, cansativa. Depois, voltamos e conversamos. Há quanto tempo você não conversa com um ser vivo, hein? E não estou falando de bom dia ou boa noite.
            Ele ainda me conhecia bem, enxergava em mim muitas vezes o que eu mesmo não conseguia ver. Era perito nisto, desde quando éramos crianças. Curiosamente, aquelas palavras foram as que eu precisava ouvir e eu me senti bem outra vez. Até um suspeitoso sorriso eu consegui libertar.
            O jantar fora muito agradável, fomos no melhor restaurante que havia por ali. Conversamos o tempo inteiro, mas nada pessoal, apenas informes do mundo exterior. Disse a ele que estava ali há três meses para escrever um novo livro, já contratado e encomendado pela editora, com prazo definido. Mas lhe disse que avançara pouco, pois me faltara a inspiração. Mais um bloqueio criativo, como tantos que eu vinha tendo nos últimos dez anos.
            Quando voltamos para casa, ainda conversávamos sobre amenidades, quando de repente ele disparou:
            – Por que você não olha mais nos olhos da gente? Nos olhos de ninguém!
            Fora certeiro!
            – Eu observei o tempo inteiro. Não olha nos olhos. Está inseguro, suas mãos tremem – uma pequena pausa. – Você está doente?
            – Doente? – tentei ainda esboçar um sorriso, mas inútil. Suspirei. – Não, não estou doente.
            – Mas você notoriamente está sofrendo! O que houve? O que está havendo com você, meu irmão?
            Uni as minhas duas mãos e apertei-as o mais forte que pude. De repente, alheio à minha vontade, lágrimas descontroladas brotaram dos meus olhos. Nem tenho ideia de quando chorei na frente de outra pessoa pela última vez. Por mais de cinco minutos minha voz ficou muda. Ele levantou-se e pegou uma garrafa de vinho e duas taças.
            – Vamos beber um pouco. Talvez ajude.
            Uma taça depois, o sangue parecia correr um pouco mais rapidamente, e uma pequena onda de calor percorreu meu corpo.
            – Que está havendo? Tem certeza que não está doente e está escondendo isto? Por favor, não faça segredo – ele praticamente implorava por alguma palavra minha.
            – Não! Juro que não estou doente, juro! Mas… mas acho que estou deprimido.
            – Deprimido?! Desde quando? Por quê?
            – Não sei. Simplesmente estou. E isto está acabando comigo! Não consigo nem mais escrever. Qualquer coisa que faço é uma porcaria. Uma merda, isso sim!
            – Sabe, acho que você não deveria ter largado a universidade. Sempre disse que dar aulas era quase uma terapia pra você.
            – É… talvez tenha razão… Mas não posso voltar a dar aulas, tenho tantos compromissos, tantos prazos.
            Ele levantou, andou pela sala, talvez pensando em algo para me dizer, me confortar. Não queria estragar a visita dele. Tantos anos que não o via… Eu tentava negar até para mim mesmo. De repente ele parou diante de algo que chamou sua atenção. Era uma revista, aberta sobre uma prateleira.
            – Esta cidade… Eu lembro!  Você já esteve lá, já morou lá… Por que a revista está aberta nesta página?
            – Ela me traz boas recordações…
            Subitamente minha voz engasgou. Não consegui continuar. Ele percebeu.
            – Espera! Essa sua melancolia, sua depressão… tem algo a ver com esta cidade?
            Sorvi a segunda taça de vinho. Meu peito parecia que ia explodir. Eu balbuciei um talvez quase mudo.
            – Cara, você já se apaixonou por alguém? Uma paixão impossível? Desses que geralmente você vê em livros ou filmes? – perguntei, fazendo-o sentar com está súbita mudança de atitude minha.
            – Tipo, um grande amor não correspondido?
            – Sim, exatamente.
            Ele suspirou e sorriu.
            – Meu irmãozinho, quem nunca teve uma paixão assim, na adolescência…
            – E se ela não acontece apenas na adolescência? Se ela acontece quando você já é um cara maduro, achando que já passou por tudo na vida?
            – Cacete! Você nunca disse nada! Quando foi?
            Eu me recostei no sofá, enchendo taça outra vez.
            – Há dez anos…

4 comentários:

Cacau disse...

Ufa, respirei! Melancólico como deveria ser, já estou ansiosa pela próxima parte...

DG Jem disse...

Posso estar errado no meu ponto de vista,

mas o que me chama mais antenção é a luta na personalidade do personagem, que segue um paradoxo entre os conflitos da meia idade e os dilemas da juventude. Pelo menos pra mim, é possível projetar, e pressupor, uma vida galgada na "busca daquilo que não se sabe o que é" ainda. O resultado é a melancolia, a frustração e a falta de algo para apoiar o sentido da vida; um grande amor e filhos, por exemplo.

O mais interessante de tudo é que fico imaginando qual seria a solução para o sujeito.

Se eu fosse o irmão dele, mandaria que divagasse na poesia de Drummond, pra que ele entendesse que, mesmo em um cantinho "aparentemente insignificante" da existência "somos únicos em nós mesmos".

Cacau disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Cacau disse...

Pois é DG Jem, também fiquei pensando em uma solução para o sujeito solitário e cheio de conflitos acredito que essa insignificância da existência na meia idade deve atormentar várias pessoas e levar todo um paradoxo para um conto e contextualizá-lo de forma que o leitor compreenda e analise sua própria vida comparando-a e induzindo-o a uma sistematização de seus próprios conflitos e desejos que deveriam ou não terem sidos vividos na juventude para que não acarretasse na formação de uma personalidade defeituosa e na formação de um ser humano frustrado é algo que nos remete a pensar minuciosamente e detalhadamente a cada paragrafo lindo. Posso tb está errada mais buscar o que não se sabe nos remete a uma frustação a falta de sentido da vida e consequentemente a solidão , daí eu pergunto ao escritor, a insignificância é apenas uma condição projetada pela mossa mente, certo?