sábado, 5 de janeiro de 2013

Um conto e o encontro - parte 2




              O céu nublado prometia uma chuva daquelas. Nuvens cada vez mais cinzentas se aninhavam, aumentando o que muitos estavam temendo: outro temporal. Em alguns locais já se podia sentir pequenas gotas caindo, fazendo com que todos corressem a abrir seus guarda-chuvas e sombrinhas. Não era comum chover naquela época do ano, afinal o período das chuvas havia passado, e as tempestades de verão ainda estavam longe. Era dezembro, quase véspera de Natal.
            No seu carro, o temporariamente professor de “criação jornalística” arrumava suas coisas, não podia esquecer nada para não ter que voltar caso se esquecesse de algo (e ele sempre esquecia!). Àquela altura a chuva já desabava sobre o teto do carro fazendo um barulho contínuo e inebriante, quase um mantra, se fosse possível fechar os olhos e apenas contemplar aquele som. Mas o tempo estava curto e ele atrasado para uma reunião com alguns colegas. Era o seu primeiro compromisso da tarde. Tinha agora duas atribuições, manter o foco nos seus afazeres profissionais, depois ir para a aula, a última da semana. Olhou outra vez sua pasta. Estava tudo ali – computador, agenda, canetas, celular. Dois maços de trabalhos corrigidos e ainda outros trabalhos para ler e corrigir estavam no banco de trás. Bem, parecia não faltar nada. Pensou que a vida de jornalista não era fácil, mas a de professor era ainda mais complicada.  Mas quando ele saiu do carro, abriu o guarda-chuva, deu dois passos, lembrou-se de uma revista que continha uma reportagem que mostraria ao grupo. Após alguns xingamentos impronunciáveis, apanhou o que precisava e se dirigiu até o local onde os colegas já estavam reunidos.

            Reuniões normalmente são enfadonhas, cansativas, mas aquela, especialmente naquele dia, que tanto ainda tinha por fazer, ganhava pela sua morosidade e não produtividade. Havia uma grande conspiração contra ele, e a reunião prometida para terminar cedo, durou a tarde inteira, praticamente. Após o término da mesma, correu para a universidade. Durante o caminho, lembrou contente que estava no derradeiro dia do seu compromisso com o amigo. Cansado, todavia satisfeito. Não tinha vocação para o exercício, mas o ajudou a perceber a luta diária do professor que enfrenta os mais diversos tipos de estudantes. Aqueles que querem aprender, aqueles que fingem que querem, e os que não estão nem aí e apenas reclamam. Isto sem falar nos diversos problemas extraclasse que tornam ainda mais laboriosa a profissão. Dura é a vida do professor no Brasil.
A chuva continuava quando estacionou o carro no estacionamento próximo ao prédio, repleto de vagas. Não esquecera nada desta vez e correu, carregando consigo diversos papéis. Entrou no gabinete cedido pelo professor Rodrigo, o amigo que o colocara naquela enrascada. Viu que o ar condicionado ainda estava quebrado, e se não estivesse chovendo, estaria derretendo, suando em bicas, como dizem por aí. Mas fazendo um balanço dos cinco dias, não tinha do que reclamar. A turma que iniciara com quarenta alunos no primeiro dia (mais do que o esperado), desde o segundo contava com trinta, permanecendo assim até então. Havia estudantes de vários cursos, de jornalismo havia uns cinco. Organizou o material. Era sexta-feira e queria encerrar com um último trabalho, ideia de Rodrigo: um conto, crônica, qualquer produção literária com características jornalísticas. Objetividade, concisão, atenção nos detalhes minuciosos e reveladores. Eles tiveram a noite da quinta e o dia da sexta para desenvolver a atividade. Fechou a porta e correu à sala de aula.
            A turma de trinta alunos estava toda lá, não faltara ninguém. Sentia que todos queriam que aquele curso terminasse. Mesmo gostando das aulas, como pareciam estar, era um período de férias. Felipe arrumou seu material sobre a mesa e principiou com o conteúdo que restava na programação dele. Na segunda metade, pediu que lhe entregassem suas produções literárias. E foram as mais diversas: crônicas, contos, até poesia havia, resenhas de artigos. Dentre todos, ele sabia que uns cinco ou seis tinham grande potencial, e se fossem bem orientados, um belo futuro literário (ou jornalístico). Ele selecionaria três trabalhos, como previamente acordado, para serem lidos em voz alta. Quando recebeu todos, folheou-os, e foi passando de um em um, quando, de repente, derramou suas vistas naquele que havia uma observação escrita em tinta verde: “Por favor, este é para o senhor! Não leia em voz alta!”. Não conhecia todos, gravara alguns nomes, seus respectivos cursos, algo que era facilitado pela sua ótima memória e também por ser um excelente fisionomista. Seus olhos, institivamente, procuram a dona daquelas palavras, digitadas e manuscritas. Percorreu visualmente o ambiente. Ela se encontrava no final da sala, com os olhos vidrados nele. Era uma moça calada, um tanto reclusa. Lembrara-se dela, apresentou-se a ele como aluna de Letras, de período intermediário, aluna de Rodrigo. Ela não sorria, continuava séria, mas sabia que o professor tinha visto o seu recado, pois o semblante dele mudara, a respiração sofrera uma alteração, e o olhar repentino em sua direção o denunciara. Felipe pediu à turma mais dez minutos para folhear melhor todo o material. Leu a história dirigida a ele. Era um conto diferente, muito bem escrito, com forte teor erótico. Um observador mais atento o veria corar. Talvez, alguém realmente muito atento, teria observado a sua excitação crescendo a cada linha que avançava no texto. Um rápido resumo da história: uma aluna e seu professor, que se entregavam em uma aventura de paixão e sexo, quebrando paradigmas, preconceitos, vivenciando um êxtase pleno na obscuridade de suas vidas. Tudo em segredo, pois ela sabia que ele era comprometido. Mas não se importava, visto que o prazer de ambos era superior e o que de fato importava. A história, muito bem escrita e construída, direta, objetiva, sem rodeios, sem floreios, exalava paixão. Discretamente, ele colocou aquela folha de papel em sua pasta. E voltou a conduzir a aula. Chamou três estudantes para falarem sobre os seus trabalhos, a experiência adquirida, não havia tempo para leituras. Contudo, seus olhos não paravam de encontrar os daquela menina, que assinara o conto como Rosa, por ser bela e perfumada com a flor. Sabia que aquele não era seu nome real, apenas um pseudônimo, e Felipe entendia a necessidade dela pela confidencialidade, mesmo sabendo sua verdadeira identidade. Ele pode pescar, em algum momento, lampejos de seus sorrisos, além seus olhares.

            A aula terminou quinze minutos antes do combinado, e como era uma sexta-feira, todos ansiavam por ir embora mais cedo, aproveitando a estiagem da chuva. A menina saíra antes do resto turma, e ele nem tivera a chance de um último olhar. Riu consigo mesmo: “não passara de uma brincadeira”, pensou. Arrumou suas coisas, enquanto a sala se esvaziava rapidamente. De repente, uma voz tímida e suave se fez viva: “O senhor gostou da minha história?” Ele se virou e ela estava lá. Era linda! Tinha os cabelos negros, a pele alva e umas poucas sardas no rosto. Falara pouquíssimas vezes com ele durante a semana, a apresentação inicial, um “até logo”, um “boa noite”, ficando sempre no fundo da sala, sem conversar com ninguém. Nunca estivera tão próxima a ele como naquele momento. O coração de Felipe disparara. Conseguia sentir sua respiração, seu hálito adocicado. Ela ainda tinha na boca uma pastilha, que passeava de um lado para o outro, num movimento lento, provocando-o. Ele mesmo, sem perceber, estava ofegante, um nervosismo crescente, uma excitação crescente. A novidade, o inusitado surpreendia-o. De forma incontrolável, veio à mente toda a história contada por ela, imagens foram-se formando em questão de segundos. Devia ter pelo menos vinte anos a menos que ele, com a beleza típica de uma garota de dezenove, vinte anos.
            - Não gostou do meu conto? - tornou a perguntar.
- Sim… quer dizer… está muito bom! - e as palavras saíam de sua boca em staccato. - Você… escreve muito bem …
            - O senhor pode me chamar de Rosa. Apenas Rosa.
            Suas pernas agora tremiam também. O que dizer? Nunca estivera naquela situação. Tentou ser o mais complacente possível.
            - Só se você parar de me chamar de “senhor”… - disse, por fim, quase arrependido no segundo seguinte.
            - Mas é por respeito. O senhor é meu professor.
            - Na verdade não mais… - e sorriu sem jeito. - Tudo não passou de uma invencionice do seu verdadeiro professor, Rodrigo.
            - Vou confessar então um segredinho… - e fez uma longa pausa. - O senhor é mais simpático, e bonito também.
            Felipe riu daquele comentário. E os dois ficaram trocando elogios ainda por algumas frases, até que ela voltou a falar da história. Insistiu em perguntar o que ele achou, se tinha gostado. O jornalista ficou meio sem jeito quando ela perguntou se ele havia ficado excitado com a cena do sexo que ela descrevera.
            - O que você acha? - Ele respondeu após quase um minuto procurando as palavras certas.
            Rosa sorriu timidamente, baixando os olhos, mordendo o lábio inferior, depois deslizando suavemente a língua sobre os lábios vermelhos. Naquele momento, Felipe, no auge dos seus quarenta anos, com a experiência de mais de uma década convivendo com as mais singulares situações, não se conteve e a tomou nos braços, beijou aquela menina de 20 anos. Nunca fizera nada semelhante, nunca extrapolara os limites do bom senso, da ética. Porém aquele desejo foi mais forte, muito mais forte. Lembrara todas as vezes que trocaram olhares durante as aulas, desde o primeiro dia, o primeiro dia que começara a chover naquele mês de dezembro, após semanas de um calor extenuante. E o beijo foi longo, úmido, quente, ardente. Sem se dar conta, aninhava-a em seus braços; os corpos de ambos colados, como se um só fossem. Beijavam-se ardorosamente, como se quisessem devorar-se.
            - Aqui é muito arriscado - disse ele. - Pode aparecer alguém… Não sei se você quer…
            - Eu quero! - disse a menina com voz firme, decidida. - Vamos para sua sala…

            Por uns instantes, refletiu, mas com a excitação cegando os seus pensamentos, deixou na penumbra a razão, a lucidez. Combinou de encontrá-la em seu gabinete em meia hora, o gabinete do amigo que o pusera naquele imbróglio. Pensou nas consequências daquele ato enquanto se dirigia a passadas largas. Mas também pensou que situações como aquela, que se apresentam daquela forma, não são corriqueiras. Seria uma aventura, uma arriscada aventura, nada mais. Pelo visto, a razão e a prudência continuavam em total escuridão.
            Havia poucas pessoas ainda nos corredores, já era noite e ninguém dava atenção ao professor que seguira e à sua aluna que fez o mesmo trajeto pouco tempo depois. A chuva cessara. Ninguém a viu bater na porta da sala, muito menos quando ela entrou e o trinco se fechou. Agora estavam somente os dois, sem ninguém a interferir. Apenas o mundo lá fora, seus compromissos e obrigações, deveres e regras, que naquele momento, ambos deixaram do lado de fora, no exterior.
            - Eu quero ser sua! Toda sua! - balbuciou ela, os lábios trêmulos, um leve fraquejar na voz.
            - Mas você sabe que sou… - e ela cerrou seus lábios com a mão, silenciando-o. Beijou-o e sussurrou em seu ouvido:
            - Hoje eu quero ser sua! Basta-me isto!
            O perfume o inebriava. Sua excitação aflorava pelas suas calças. Enquanto o beijava, ela começou a acariciá-lo com delicadeza, provocando-lhe curtos gemidos de prazer. Os beijos tornaram-se mais intensos, ele beijava sua nuca, sua orelha, deslizava a língua sobre sua pele alva, enquanto ela lhe retribuía com carícias ainda mais intensas. Ele então acariciou sua barriga, deslizando todos os dedos, elevando sua blusa à altura dos seus seios, acariciava-os. Baixou-se um pouco e beijou sua barriga, deslizando sua língua da altura do umbigo até os seios. Beijou-o com vigor e carinho, suavidade e determinação, quando ela baixou seu sutiã, revelando o seio branquinho e rosado. Uma pétala de flor!
            Após bons minutos de carícias, eles se amaram ardentemente. Ele sentiu uma profusão de sensações que há muito não sentia. Sentira-se adolescente outra vez. Sentia-se vivo outra vez. Fizeram amor sobre o chão frio, as gotas de chuva martelando a vidraça da janela. Não havia nada a ser dito, os olhos expressavam todos os sentimentos. Um arroubo de prazer enlouquecedor fez-se materializar naquele simplório gabinete. Foi quando o jornalista, outrora professor, percebeu que a chuva continuava forte. Quase um dilúvio a varrer os pecados dos homens. E pensou que a estiagem se deu apenas para aquele encontro.
            Quando já estavam recompostos, ela sussurrou-lhe no ouvido:
            - Foi a noite mais maravilhosa da minha vida! Obrigada!
            O que ele diria? Seu coração palpitava forte, sabia dos riscos, dos perigos daquele encontro, daquela relação. Ela pareceu entender.
            - Não se preocupe! Eu lhe disse antes: não se preocupe! Não vou, nem quero prejudicar ninguém. Quero apenas esse momento de prazer, essa felicidade que me toma todo o corpo. Quero, se possível e até quando for possível, sempre ser sua…
            - Você é linda! - suspirou, ainda atordoado com todo o acontecimento. - Serei também sempre seu, sempre e até quando você quiser! - disse ele no arroubo do momento. Não obstante, ambos sabiam que não seria assim.
            Ela disse que precisava ir. Estava tarde. Mas antes, antes mesmo do beijo de despedida, murmurou:
            - Já estou ansiosa pelo próximo encontro. Farei e lhe darei outro conto. Um conto e um encontro.
            E beijou suavemente, piscando levemente o olho direito, antes que ele pudesse dizer que não seria mais seu professor. Que, se não tivesse sido por um favor a um amigo, aquele encontro nunca teria existido. Ela sabia disso, não era preciso dizer nada. Palavras, em muitos casos, são completamente desnecessárias.
            Felipe ainda ficou por alguns minutos contemplando pela janela a chuva que caía forte e insistentemente.

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