quarta-feira, 24 de novembro de 2010

MEMÓRIAS SUJAS (parte 2)

Sem mais delongas, porque a segunda parte é mui longa...




Memórias Sujas

  ( . . . )




            O sol brilha com intensidade naquela manhã de terça-feira, em pleno mês de setembro. O sol entra com liberdade entre as frestas da persiana da janela do quarto 502, no bairro da Boa Vista. Vê-se, dali mesmo, outros prédios e as copas das muitas árvores circundantes, eram mais no passado.
            O sol desenhava listras no corpo do homem que ainda dormia, era um efeito até certo ponto engraçado, e pela posição do homem, um olho estava claro, iluminado, e o outro não, escurecido. Gustavo não suportou por muito tempo aquela claridade em apenas um de seus olhos e despertou de seu sono pouco recompensador. Fora dormir tarde mais uma vez, mexendo no computador.
            Levantou-se e dirigiu-se ao banheiro, e após uma longa mijada, escovou os dentes.
            — Puta que o pariu! — bradou, em baixo volume, ao tomar o relógio na mesa de cabeceira, à direita da cama. — Atrasado de novo!
            Correu o apartamento inteiro, tudo em ordem. Tomou um pouco de leite diretamente da caixa e foi tomar um banho rápido. Em poucos minutos estava passando pela portaria, cruzando a avenida e dirigindo-se ao ponto de ônibus. A viagem durava pouco mais de meia hora, e nesse período, em pé ou sentado, sua cabeça ficava vazia.
            Trabalhava numa repartição pública, mas não era funcionário. Fora contratado como prestador de serviços, no caso, para informatizar toda a seção, dando cursos de internet e rede. Já fez metade do trabalho, mas caíra nas graças do chefe e ficaria trabalhando lá, depois de encerrado o contrato. Sempre era bom ter um técnico em informática do seu gabarito.
            Gustavo havia completado 30 anos há pouco mais de mês. Não tinha parente vivendo próximo, os pais moravam no interior de Pernambuco, enquanto que os irmãos moravam no sul. Há quase dez anos vivia sozinho.
            O tempo corria sossegado, a viagem fora tranquila como todos os dias. Do ponto onde descera até o local de trabalho eram poucas quadras; subiu os nove andares do velho prédio e enfim adentrou no andar onde ficava a seção onde trabalhava. Havia muita gente àquela hora, pessoas acostumadas ao barulho das teclas chocando-se contra o papel, ritmado e frenético, estavam perdidas diante das telas dos microcomputadores. Dirigiu-se à sua mesa. No caminho, fora interceptado por um homem baixo, de óculos redondos e armação de metal descascado, pouco calvo e um bigode amplo (ridículo na opinião de Gustavo) que lhe escondia o lábio superior.
            — Gustavo — chamou ele, com a voz grave. — Isso são horas? É o segundo dia!
            — Calma, seu Gonçalves…
            — Como posso ter calma? — disse ele, com a voz um pouco rouca, irritante. — Venha até a minha sala.
            Os dois caminharam sob poucos olhares curiosos. Entraram numa sala pequena. O chefe fechou a porta e acendeu um cigarro. Gustavo sentou-se.
            — Desculpe, chefe.
            — Não me chame de chefe, rapaz, sabe que não gosto.
            — Qual é!
            — Tenha modos!
            O velho sentou-se do outro lado da mesa e encarou-o firmemente. Tornou a falar:
            — Gustavo… Você é um excelente profissional. Sabe disso, já lhe disse uma porção de vezes. Disse até que segurarei você aqui após o encerramento de seu contrato, não foi? E você sabe muito bem que um trabalho seguro está difícil nos dia de hoje, não sabe?
            O outro assentiu com a cabeça. Seus olhos continuaram fitando o patrão, mas seus pensamentos voaram longe. Era sempre assim, quando alguém começava a falar compulsivamente, sua atenção minguava, desaparecia. Aos poucos os olhos ganhavam vida e voltavam a mexer-se. O patrão, que circulava pela saleta, tornou a sentar-se. Concluiu:
            — Tenha juízo, rapaz. Agora pode ir.
            Gustavo se levantou, sorriu e saiu. Sentou-se em sua mesa, ligou o computador e pôs-se a trabalhar.
            O dia passou logo. Dizem que quando se ocupa a mente com assuntos diversos, as horas correm, e nada melhor para isso ocorrer que o trabalho. Da janela ouvia-se o barulho da rua e via-se o céu, e as pessoas seguindo suas vidas incólumes.
            Gustavo desceu com colegas. Era noite, sem nuvens, sem brisa. Andou passivamente até o ponto de ônibus, carregando sua pasta. Havia poucas pessoas no local, e quando veio a sua condução, subiu só. Passava das sete e meia. O ônibus não estava cheio, mas havia apenas um lugar disponível. No outro assento encontrava-se uma mulher. Gustavo olhou-a brevemente (enquanto se sentava), não pôde ver seu rosto, ela estava com a atenção para a rua. Sentou-se enfim, sem dar maiores importâncias.
            Após alguns minutos de viagem, com o canto dos olhos, olhou a moça. Discretamente virou o rosto, mas não conseguiu vê-la, apenas um pouco de seu perfil. Era bela! Parecia não ser muito alta, tinha a pele alva, os cabelos negros e lisos, presos de tal forma que se podia ver sua nuca e algumas poucas sardas. Distinguiu ainda os lábios rubros e encorpados; numa rápida avaliação daria vinte e cinco anos, talvez pouco mais, talvez pouco menos. A curiosidade de Gustavo floresceu, não pela beleza singular e expressiva da misteriosa mulher, mas pelas lágrimas que ele descobriu em seus olhos. Sim, ela chorava copiosamente, mas sem maiores alardes, por isso tinha o rosto virado para fora, nas mãos um lenço rosa amarrotado era utilizado para secar-lhe o rosto de vez em quando. Aquilo o comoveu, fazendo com que ele deixasse de contemplar o resto de seu virtuoso corpo, as pernas alvas e torneadas, e principalmente, o decote de sua blusa, generosamente aberto, deixando à mostra seu seio direito, escondido pelo sutiã.
            Seus pensamentos se esvaíram completamente, não conseguia nem parar de olhá-la. Ela, em momento algum, o percebeu. Ele não a tirava do pensamento.
            Poucas paradas antes da sua, a soturna moça levantou-se, pediu licença e dirigiu-se à frente do ônibus. Naquela fração de segundo, Gustavo contemplou inteiramente sua beleza entristecida, seus olhos se cruzaram com a velocidade de dois raios de luz, todavia, pelo menos para ele, foi o tempo do infinito. Ela o fitou e talvez lhe tenha rogado ajuda (assim interpretou). Tanto que, após ela descer, e o ônibus já se ter deslocado um pouco, ele levantou-se e precipitou-se a gritar para que parasse o veículo.
            Ela andava ligeiro, ele a seguia a certa distância. A moça nem sequer desconfiava da presença dele, estava tão aturdida em suas dores que, se um raio lhe caísse ao lado, nem assim perceberia. Gustavo tinha a respiração forte, ofegante, suava deveras, o coração acelerado. Acompanhava-a sobre os mesmos passos, a custo, vencendo seus medos. Entrou com ela numa rua estreita, escura, mais ainda com os arbustos cobrindo todo o percurso, impedindo que a iluminação artificial cumprisse seu papel. A rua era estreita e comprida, com o calçamento irregular. Não precisava se esconder, ela nem olhava para trás, ele era um vulto, ela também. Seguia reto, ereta, decidida. Parou defronte a uma casa de muro baixo, de um verde-musgo envelhecido, do lado direito da rua. Entrou. Gustavo aproximou-se, não viu carro na garagem. Aproximou-se o suficiente para ouvir uma discussão. Seu coração palpitava acelerado, o medo que sentia aflorava com o suor, mais ainda quando empurrou o portão entreaberto, que rangeu baixo, e avançou no jardim de grama malcuidada. Pouco se via das lajotas que conduziam até a porta de entrada. Gustavo postou-se embaixo da janela. O barulho no interior da casa continuava, vinha de dentro, talvez do quarto, e ele distinguiu a voz de um casal. Ele levantou a cabeça e olhou rapidamente o interior da casa. Viu móveis velhos, daqueles que existem há pelo menos duas gerações, uma televisão de um modelo bastante antigo, entre diversos outros adereços. De quem seria aquela casa? A moça lhe pareceu nova demais para preferir tantas antiguidades. Olhou para cima e viu um ventilador de teto ligado, girando muito lentamente. À esquerda viu uma cadeira de balanço, muito parecida com a que sua falecida avó um dia tivera. Abaixou-se e tentou pensar com clareza no que estava acontecendo. O suor escorria-lhe ainda pela fronte e com as costas da mão retirou o excesso. Soprava uma brisa fresca, brisa noturna. As mãos tremiam um pouco. Tornou a escutar gritos e objetos quebrando. Levantou-se e não viu nada pela janela, a briga vinha dos fundos da casa. Olhou em volta e viu, no seu lado esquerdo, um portão, acesso para um beco escuro e estreito. Abriu-o, e este rangeu alto, o que fez o coração de Gustavo acelerar ainda mais. Caminhou lentamente, tateando as paredes úmidas. Havia uma luminosidade no fim do beco, os fundos da casa. À medida que andava, a intensidade dos gritos aumentava, e já se entendia o que antes era uma confusão de palavras. Chegou no quintal, estavam os dois na área de serviço. Viu um homem alto, moreno, muito forte, de costas para ele. Do outro lado, sentada num banco, a triste moça que ele seguira. Parecia mais triste ainda, tinha o olhar lúgubre, desconsolado; meteu as mãos no rosto e chorou compulsivamente. Pelo que Gustavo pode compreender, aquele era o marido, e a agredia ferozmente. Vez ou outra ela levantava o rosto e tentava proferir algo inutilmente. Gustavo permaneceu abaixado, encoberto pelas sombras. Subitamente, o nervosismo passou, os suores sustaram. Procurou compreender o que se passava entre o casal. Ele apenas a xingava, despejava ofensas sobre ela. Num certo momento ela despejou:
            — Pare! — gritou com força — Chega! Pare de me tratar como culpada. Você é um monstro! Vil… inescrupuloso… baixo…! O culpado é você, sua amante. Ah, como pude me enganar tanto. Você e sua mãe, os dois, iguaizinhos, são escória…
            — Cale-se, sua cadela! — Gustavo, atônito, ouviu o desferir de um tapa. Cerrou o punho e olhou a cena. A mulher estava caída, cobrindo o rosto, o marido bufava. Ela levantou-se, guerreira:
            — Vou embora, agora — disse ela, serenamente. — Acabou, dessa vez acabou!
            Ele enfureceu-se mais ainda, urrou de ódio, endemoninhado. Gustavo observava atentamente, transtornado, na iminência de interferir. O marido pegou-a pelos braços e a atirou no chão, desferindo um chute violentíssimo na sua barriga. A última coisa que Gustavo ouviu foram os gritos de dor e agonia da pobre, quase desfalecida, mulher. Era a gota d’água. Ele correu para cena, na direção do agressor, que se assustou com o estranho surgindo sobre ele. Não houve uma palavra, Gustavo derrubou-o no chão e socou-o até quase a morte. Quando viu que o marido estava desacordado, mas ainda assim respirava, a moça pegou seu salvador pelo braço:
            — Me ajude! Me tire daqui!
            Ele a olhou seriamente, penetrou no fundo de sua alma e sentiu seu desespero. Puxou-a para si, abraçando-a forte.
            — Vamos, vou-lhe tirar daqui.
            Os dois saíram pelo beco. Ela fugiu do jeito que estava, apenas com a roupa do corpo, sem documentos, sem nada. Naquele momento ela queria apenas livrar-se de seu agressor, seu algoz. Gustavo a carregava, segurando sua mão. Correram pela rua escura e deserta, não falavam, não respiravam.

2 comentários:

Cacau... disse...

Puta que o pariu! Mijada!!!
Adorei, parece até piada!(...rs...)
Falando sério Gustavo é um descompromentido já espero a prósima dele.

Márlon Soares disse...

Tenso!!!
Next Chapter, please.

Está ótimo!