segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Conto: ESTOCOLMO (1ª parte)

Estocolmo



            “Estocolmo?”, perguntou o primeiro.
            “Sim, é isso que estou falando”, respondeu o outro.
            “Mas por que Estocolmo? É isso que quero saber.”
            “Estocolmo é uma cidade da Europa, sua anta”, respondeu um terceiro, intrometendo-se na conversa. “É a capital da Dinamarca!”, completou, arrasador.
            “Que idiota!”, riu o segundo a falar. “Estocolmo é a capital da Suécia!”
            “Mas ninguém ainda me respondeu o porquê de Estocolmo”, desabafou o primeiro.


*          *          *


            Acordei com o barulho da televisão. Não entendia o que se passava. As lembranças eram vagas e vinham em golfadas. Apesar do frio, comecei a suar. Senti um palpitar mais acelerado e quase pude ver o coração pulsando descompassado sob a bata. Tornei a fechar os olhos.
            Acordei mais uma vez. Não sei quanto tempo dormi desta vez, desde a última vez. Não sei se foi antes ou depois. O tempo era travesso e algo me dizia que ele queria pregar-me uma peça, uma triste peça. Arregalando os olhos, até minhas pupilas adaptarem-se àquela penumbra, os contornos foram-se fazendo aos poucos, e quase pude visualizar uma pequena luminosidade na fresta da porta. As dores voltaram. As dores eram intermitentes, intensas. Num dado momento, mesmo tentando controlar, eu chorei.
            Acordei pelo terceiro dia consecutivo durante a madrugada. O frio era absurdo e apenas uma bata me cobria. Aos poucos a memória ia se reestruturando, à força. As dores haviam diminuído significativamente, mas eu ainda não conseguia me mexer. Uma força maior me prendia à cama. Apesar do frio, eu continuava a suar.


*          *          *


            O calor era insuportável. Era o terceiro dia ali, isolado do mundo. Ela havia parado de chorar havia algumas horas. De uma fresta da porta, eu a olhava deitada no colchão. Continuava com a mesma roupa, agora suja, encardida.
            Voltei ao meu lugar de vigília, lendo uma revista de seis meses atrás. Notícias velhas, nenhuma novidade. O engraçado eram as horas que passavam vagarosamente e, a cada minuto, mais lento parecia o andar dos ponteiros. Senti vontade de abrir aquela porta e falar com ela, pedir perdão, dizer que eu fui contrário àquela atitude, àquela violência. O problema é que quando se tem outros problemas, o precipício real é sempre pior do que o imaginado. Como explicar a ela que eu não sabia. Como dizer que a violência que ela sofria era menor do que a violência que eu estava sofrendo.
            As horas passavam, o sol percorria o arco perfeito e agora se punha no horizonte. O que seria mais belo: o raiar do sol ou a sua despedida. Tons em vermelho se faziam presentes e antes eu não tinha tempo de perceber isso. Como agora pequenas coisas se faziam tão importantes.
            O telefone vibrou na Ave Maria.
            “Ela está dormindo”, respondi. “Não fez mais barulho, não reclamou.”
            Ele disse que não apareceria mais e perguntou se ainda tinha comida suficiente.
            “Tem sim, tem bastante.” Concluí, minha vontade sincera foi soltar um ‘infelizmente’ no meio da frase. Aquilo verdadeiramente me consumia. Deitei o telefone sobre a revista velha e caminhei para esticar os ossos.
            A casa era isolada, no meio de uma propriedade no meio do nada. Da porta se via algumas vacas pastando, galinhas soltas a correr no terreiro. Eu não fazia ideia de que aquilo ainda existisse no meio da cidade, uma verdadeira granja em plena região metropolitana.
            Joguei uns pães velhos para as galinhas e coloquei água na tina das vacas.
            Quando retornei para a casa ouvi a voz dela. Não havia mais choro, mas sim um pesar, uma fraqueza, até mesmo um conformismo na sua voz. Também, depois de três dias presa, a pão e água (literalmente), não tem aquele que teria forças para lutar. Sobre a mesa, havia pão e uma garrafa de água, alguns copos plásticos. Essa era a alimentação dela, minhas ordens foram específicas. Na geladeira havia queijo, mortadela, uma garrafa de refrigerante de uma marca que eu nunca ouvira falar. Preparei um sanduíche reforçado, caprichado, e pus na bandeja junto com um copo de refrigerante. Destranquei a porta do quarto onde ela estava. Não havia mais luz, a iluminação que entrava era da sala onde eu estava. No canto do pequeno quarto, ficava uma cama de solteiro, logo de frente para a porta. Não havia janela e o calor ali dentro era ainda maior. Ela estava encolhida no canto da cama. Aproximei-me.
            “Você está com fome?”
            “Sim, estou… estou com muita fome”, disse ela, após um breve soluço. Era a primeira vez que eu falava com ela. A escuridão não permitia que ela me visse, mas eu pude ver a corrente presa ao seu pé. O sangue coagulado, já estava escuro.
            “Eu preparei algo pra você… um sanduíche…” Não sabia o que dizer. Pensei em dizer algo engraçado tipo – não é nenhum McDonalds, mas dá pro gasto – mas vi que não teria a menor graça. “Eu trouxe refrigerante também!” E pus a bandeja sobre a cama, ao alcance dela.
            “Você poderia afrouxar isso aqui? Está doendo muito.” Ela indicava a corrente presa no pé direito dela; eu olhei para o cadeado. Mas eu não tinha a chave.
            “Se eu pudesse… Não estou com a chave aqui.”
            Afastei-me um pouco, pé ante pé, em direção à porta. Ainda pude ouvi-la dizer:
            “Estou com medo…”, e o silêncio se fez em seguida.

            A noite foi de mais choro. Não era como no começo, choro de desespero. Agora o choro era doído, soluços baixos que me deixavam ainda mais aflito. Como eu fui parar ali, onde estava com a cabeça. Adormeci me lembrando dos fatos. Nada justificava aquela violência.

            O dia amanheceu com Jorge, o pressuposto líder, dando tapas no meu rosto. Acordei assustado, com o coração acelerado.
            “Que houve?”
            “Nada não. Como foi o dia ontem? Ela reclamou mais? Continuou gritando?”
            “Não. Ela se comportou bem, acho que se conformou com a situação.”
            “Melhor assim. Não vou tolerar patricinha dando histérico aqui.”
            “Veja o lado dela…”
            “Veja o lado dela um caralho!” Berrou o outro, que era o mais velho, mais velho de todos nós, não conhecia o seu nome, só que o chamavam de Zóio. Vale ressaltar que não vi nenhum motivo nele para esse apelido. Mas ele assustava, ele me assustava. “Quero que essa puta se foda de chorar!”
            “Calma, Zóio, não carece perder a paciência aqui não. A família dela já disse que ia colaborar, não disse? Vamos esperar”, disse o outro numa tranquilidade assustadora.
            “Vocês falaram com eles?”, perguntei.
            “Claro, né, porra! Você acha que a garota veio passar férias aqui?”
            “Até quando?”
            “Até quando o quê?” perguntou Jorge.
            “Até quando ela vai ficar aqui? Quando vão dar o dinheiro pra soltar ela?”
            “Bem, disseram que até o final da semana eles conseguem e entregam. Para o bem dela, espero que consigam mesmo.”
            Os dois ainda ficaram falando alguma coisa, quando o tal do Zóio resolveu ir até o quanto onde ela ficava. Tentei perguntar o que ele ia fazer lá. Mas Jorge me segurou.
            “Pro seu próprio bem, rapá, é melhor você começar a manter a sua boca fechada.”
            O outro colocou um capuz na cabeça e entrou no quarto. Ouvi o choro dela recomeçar, agora um choro alto, desesperado. Depois um som de uma tapa e o choro fora abafado.
            “Que é que ele vai fazer, Jorge? Cara, pra que isso? Ela já está sofrendo pra caralho, meu!” Ainda tentei correr para o interior do quarto, mas fui contido.
            “E é melhor ela não fazer docinho, não, viu? Zóio não é muito paciente não.”
            Alguns minutos se sucederam até que ele voltasse, só que agora furioso. Tirou o capuz e jogou sobre a mesa. Passou como um foguete em direção à porta, à saída finalmente.
            “É bom que os pais dela paguem tudinho. Mas eu devolvo essa puta toda furada, ah isso eu devolvo!” Disse ele enquanto passava por mim e pelo seu comparsa.
            “É bom você controlar ele, Jorge. Esse tipo de atitude é que fazem as coisas darem em merda.”
            “Fica sossegado. Tudo vai terminar como tiver que terminar. Olha, eu trouxe mais pão, queijo e mortadela pra você aí. Pra ela continua sendo só pão e água, entendeu? Hoje não voltamos mais. Qualquer coisa eu ligo.”
            Ele saiu logo em seguida. Entraram no carro e disparam dali. Fechei o portão e voltei para o interior daquela casa pensando no que eu havia me tornado: capacho de bandido! Mas o que eu sou? Participando de um sequestro, sou tão bandido quanto aqueles dois, não importa como eu fora parar naquela situação. Lembrei-me dela e corri para o quarto. Na ânsia de ajudá-la, não me lembrei de cobrir o rosto e entrei a toda no quarto. Ela me olhou com aqueles olhos penetrantes. Havia alguma luz no interior, telhas deslocadas permitiam a entrada do sol iluminando fracamente o local.
            Ela estava encolhida, no canto da cama, abraçando suas pernas, escondendo o rosto machucado detrás dos joelhos. Estava ferida, os lindos cabelos escuros assanhados. Um filete de sangue escorria de sua boca. A roupa rasgada revelava um seio lindo, delicado. E vi suas pernas arranhadas… Um suspense tomou conta de mim, meu corpo tremeu. Aproximei-me dela, que se recolheu ainda mais tentando se proteger.
            “Calma!”, eu disse, em voz bem baixa. “Não vou fazer mal a você, não vou te machucar.”
            Ela não chorava, não demonstrava qualquer som. Mantinha os olhos fechados, enclausurada em mundo escuro, evitando abri-los para não ver a realidade à sua volta. Aproximei-me ainda mais, ficando a centímetros dela, e afastei alguns fios de seus cabelos de cima de seus olhos. Foi quando eu percebi que ela chorava, apenas desciam lágrimas de seus olhos, encontrando caminhos em sua face, desaguando em seus lábios cerrados. Não sabia o que fazer. Levantei-me, corri para pegar um pano limpo. Voltei, ela estava no mesmo lugar.
            “Me deixe ajudá-la… você está machucada, está sangrando…”, falei. E toquei seu rosto com o pano. Ela continuou arredia à minha ajuda, baixando o rosto. “Por favor”, eu pedi. “Não vou machucar você, eu prometo…”
            “Me deixa ir embora então…”, ela enfim falou, com uma voz suave, trêmula.
            Fiquei em silêncio por quase um minuto. Eu devia imaginar que aquela seria a primeira pergunta ou pedido que ela faria. Mas o que eu poderia fazer? Apenas dizer que se dependesse de mim ela estaria livre, não bastaria. Não dependia de mim, infelizmente. Eu devia uma resposta a ela.
            “Eu não posso… Juro que se dependesse de mim, nada disso estaria acontecendo?”
            Ela parece que ganhou forças naquelas minhas palavras. Sabia que não levaria um tapa, ou que não tentaria violentá-la.
            “Como não? O que você quer dizer com isso? Vocês me tiraram da porta de minha casa? Me bateram, tentaram me estuprar! Como não estaria acontecendo nada?”, gritou, pela primeira vez.
            Me afastei um pouco. Ela agora não mais escondia o rosto atrás dos joelhos, não estava de olhos fechados ou chorando. Ela me encarava, esperando uma resposta. Achei que era momento de abrir o jogo.


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