terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Conto: ESTOCOLMO (2ª parte)

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          Eu estava voltando pra casa, vindo da universidade. A poucos metros do portão, vi um vulto caído, como se estivesse dormindo. De vez em quando apareciam uns bêbados que, sem destino, acabavam dormindo na calçada. Ele estava embaixo da árvore que fica defronte ao muro de minha casa. O susto foi grande quando, ao passar ao seu lado, deparei-me com meu irmão, quase irreconhecível. Os hematomas, a sujeira, a roupa em trapos, tudo o deixava irreconhecível, ou quase.
          “Que houve, meu irmão?!”, perguntei assustado. “Que aconteceu com você, cara?”
          Ele gemeu um pouco, dava para sentir as dores. Talvez tivesse alguma costela quebrada, pois quando tentei levantá-lo ele urrou de dor. Mesmo assim, com alguma dificuldade, consegui levá-lo para dentro. Para nossa sorte, minha mãe ainda não havia voltado do trabalho, só chegaria ao final da noite.
          Quando já estava em seu quarto, de banho tomado e curativo feito, voltei a inquiri-lo:
          “E então, vai me contar ou não o que aconteceu?”
          Nunca tivemos segredos. Sempre soube dos seus problemas, afinal ser o irmão mais velho e ter uma mãe com problemas de saúde implicava em ter mais responsabilidades. Muitas vezes esconder problemas. Há cinco anos ele havia se envolvido com drogas, passado por clínicas de reabilitação, levado embora grande parte das economias da família. Há alguns meses me pareceu que ele havia tido recaídas, mas como não havia sumido nada de dentro de casa, e como ele mudou pouco suas rotinas, ainda era uma hipótese. Todavia, aquele estado dele demonstrava que estivera errado, mais errado em não o ter interpelado no primeiro momento que desconfiou. Se não estava trabalhando, onde teria conseguido dinheiro para drogas?
          “Com uns caras…”, respondeu ele após alguns sacolejos. “Estou devendo muito”, disse não contendo as lágrimas. Nunca vi o meu irmão tão arrasado. Não pelas pancadas que levara, mas pelo abalo psicológico. Apesar de ser alguns anos mais novo, era mais duro do que eu e mesmo nas piores situações em que já se encontrou, não chorava. “Desculpe”, ele disse.
          “Mas o que houve? Quanto você está devendo?”, eu sabia que a questão era dinheiro.
          “Muito, não podemos pagar…”
          “Sempre se dá um jeito”, eu disse.
          “Mas acontece que eles querem falar com você… Desculpe.”
          Aquelas palavras acabaram comigo. Sempre ajudei o meu irmão, mas sempre evitei chegar próximo ao meio em que ele se envolvia. Agora ele me jogou na sujeira dele. A minha piedade transformou-se em raiva. Eu precisava ter uma vida regrada para conseguir terminar o curso, não perder a bolsa, conseguir um emprego, ajudar minha mãe no que fosse possível. Ela só podia contar comigo. Decidi que já era o momento de dar um basta naquela situação. Tinha que colocar a polícia no meio, entregar a quem de direito. Faria isso no dia seguinte.
          Foi pouco antes do horário de minha mãe chegar que a campainha soou. O soco na boca do estômago me fez ficar sem respirar por alguns bons segundos. Enquanto isso, outro me segurou pelo pescoço, dando-me uma gravata que me deixou sem conseguir falar. Foram rápidos, disseram que tinham um serviço, que seria o pagamento pela dívida do meu irmão. Quando me recusei, já esperando outro golpe violento, a violência veio nas palavras.
          “Não tem jeito… você já está na jogada, otário!”, disse o sujeito mal-encarado conhecido como Zóio. “E se você fizer alguma gracinha, eu mesmo corto o pescoço da sua mamãezinha…”
          Aquela frase, dita com ênfase, de forma cruelmente assustadora, morreu no meu ouvido. Não sei o que doía mais, a ameaça sobre a vida de minha mãe ou a dor da traição do meu irmão, que entregara cópias dos meus documentos àqueles bandidos. Com eles, alugariam uma casa na periferia da cidade, como eu viria a descobrir em seguida. Realmente, era tarde demais, eu já estava envolvido.

          Quase um mês depois eu fui arrastado para o meio do nada, sem ter o menor conhecimento do que estava por vir. Algo me dizia que era um cativeiro, tinha trancas, correntes, pouca alimentação, pouca iluminação, além de ser quase totalmente isolado da civilização. O bairro era muito pobre, com muitos casebres e sítios, praticamente um meio rural. A certeza veio quando, em plena madrugada, a porta fora aberta e os dois adentraram com uma jovem que já havia visto antes, na universidade. Não acreditei quando Isabela apresentou-se diante de meus olhos, vendada, amordaçada, amarrada. A traição do meu irmão fora maior do que eu imaginava, ele entregou para eles a garota por quem eu era apaixonado.


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