quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Conto: ESTOCOLMO (3ª parte)


            “Ele a amava, mas ela não sabia… Para ela, ele era apenas um amigo…”
            Desde os primeiros dias quando a conheci, ainda caloura, esta era a frase que eu imaginava em meu epitáfio, ou em algum posfácio meu. Achava-a interessante. Ainda no afã do recente amor, pensava no meu momento póstumo para tentar lidar com o meu presente, corrigi-lo se fosse possível. Não queria que ela me visse como apenas um amigo. Mas como poderia, se mal trocávamos palavras. Eu admirei sua beleza desde os primeiros momentos, mas não consegui lidar com os meus sentimentos adolescentes. Eu devia ser uns quatro ou cinco anos mais velho, já estava há três na universidade quando ela entrou e eu fui pagar uma disciplina com ela. Depois de algumas matérias juntos, frases trocadas que não chegavam a completar um diálogo, percebi o quão inocente eu era, como tentava me iludir, achando que uma garota linda e rica, rodeada de amigos, poderia ter olhos para alguém como eu. Ainda por cima, tímido!
            A paixão inicial tornou-se um amor um tanto bucólico. O fato de eu ter desistido dela fez com que eu a cuidasse de longe, a protegesse sempre que possível, todavia nunca deixando a penumbra. Mas não foram tantas vezes assim. Talvez a mais emblemática tenha sido evitar que um cretino em um bar abusasse dela. Acredito que ela nunca tenha desconfiado da briga que surgiu após ela deixar o local. E sempre que ela arrumava algum namorado, eu me afastava. Isto não me impedia de viver, de ter minhas paqueras, mas Isabela estava sempre permeando meus sonhos, como uma inspiração eterna para mim. A única pessoa a quem tive coragem de contar todos esses acontecidos foi ao meu irmão. Orgulhava-me da nossa amizade, da nossa cumplicidade, mesmo em meio às suas crises, ele sempre fora o meu confidente. Na primeira oportunidade, quando talvez a lucidez tenha pairado sobre ele, e se deu conta de que não tinha como pagar a dívida com os traficantes, ele se lembrou do meu amor platônico, principalmente do fato de que ela era de uma família com posses, que poderia pagar um alto resgate. Sabe-se lá o que fora tramado por esses bandidos. Impressionante a velocidade com que as coisas se ajustam e as conclusões se fazem, nas frações de segundo em que você a pessoa que jurou proteger diante de si, indefesa e maltratada. Denunciar aqueles bandidos implicava na morte imediata de minha mãe e meu irmão. Que não eram apenas aqueles dois, eu podia imaginar. Essas coisas nunca se fazem a duas ou três mãos. A casa alugada em meu nome e a minha posição ali me tornavam cúmplice, muito pior, pois o alvo era uma colega rica da universidade. Eu estava fodido e mal pago, sem atenuantes. Oficialmente fazia parte de um crime hediondo.

            Ela me olhou fixamente, no momento em que meu rosto saiu da penumbra. O olhar arregalado denunciou que ela havia me reconhecido. Era o complemento à história que eu acabara de contar para ela, tirando a parte dos meus sentimentos.
            “Você… eu conheço você…”, balbuciou, os lábios machucados tremiam.
            Ela iria me odiar ainda mais. Minha história, tão absurda, tão fictícia aos ouvidos dela…
            “Então realmente… é tudo verdade o que você disse”, concluiu, deixando-me em suspense. Não imaginava aquela reação.
            “Eu sei… quer dizer, todos do curso sabem dos problemas da sua família”, disse num tom de voz diferente, compreensivo.
            “O que você quer dizer, Bela?”, chamei-a enfim pelo apelido pelo qual era conhecida por todos os amigos.
            “Quando você trancou a faculdade, todos ficaram sabendo, pois você era dos melhores do curso. Não dá pra não conhecer você. Ficamos sabendo então dos problemas da sua família… principalmente com o seu irmão.”
            “Mas… mas… eu não sabia de nada. Nunca contei a ninguém de lá, não queria que me vissem de forma diferente… que tivessem medo de mim… ou algo parecido.”
            “Medo? Por que motivo alguém teria medo de você?”
            “Um irmão metido com drogas? Acho que isso é motivo suficiente. Talvez você, felizmente, nunca tenha visto os olhos do preconceito. Não há nada pior!”
            “Mas eu não sou assim! E afirmo que todas as pessoas que se importam com você não pensam dessa forma”, e ela segurou minha mão, a mão de seu sequestrador. Aquele gesto impensado dela, talvez, fora o gatilho para eu desabafar anos de amargura, aprisionamento. Eu também fui um refém de mim mesmo, dos meus medos, dos meus receios mais inconcebíveis. Eu chorei, chorei da mesma forma que chorei o amor não correspondido dela no meu travesseiro, chorei por todas as vezes que tive que recusar uma ajuda, por orgulho, por querer vencer apenas pelos meus méritos, chorei por meu irmão e minha mãe. O choro de um homem, o choro de um menino. O toque dela em meu rosto, o afago carinhoso que tanto sonhara, de forma irreal, o abraço quente, terno, eu a olhei nos olhos. Não vi raiva, ódio, tampouco vi piedade. Os olhos delas nos meus mostravam respeito, até um agradecimento, choravam junto com os meus. Sua boca tão próxima… Entendi, ou já tivesse entendido em algum outro momento do passado, que a minha covardia em nunca ter sequer tentado viver aquele sentimento, se devia não à minha timidez, mas à minha incapacidade de lidar com as diferenças, por eu sempre me colocar na defensiva. O primeiro a sentir preconceito de mim, fora eu mesmo. Tornei a fitar seus olhos.
            “Não me perdoo por você estar aqui”, disse, afastando-me dela. “A violência que eu cometi contra você é imperdoável!”
            “Mas se não fosse você, teria sido outro. Na verdade, agora eu vejo como fui feliz por ter você aqui.”
            Era chegado o momento de revelar o real motivo por ela ter sido escolhida? Contar mudaria tudo mais uma vez. Mas a certeza de minha derrota ao final dessa história me deu forças para revelar tudo, não havia sentido em esconder nada dela.
            “A culpa não foi sua… do seu irmão talvez… nem dele…”, ela soltava palavras tentando aliviar a dor que eu sentia e demonstrava.
            “Não, Bela, foi por minha causa”, respirei fundo. “Foi por causa do meu amor por você…”
            Aquela revelação transformou-a. Não consegui ler as suas expressões, os seus sentimentos, não estavam mais claros para mim. Ela largou minha mão e voltou a se aproximar do canto da cama. O sol estava mudando de posição, o lado em que ela estava já era pouco iluminado. Estava pensativa.
            “Perdão…”, disse por fim e me levantei, deixando-a só.
            Andei pela casa, fui até a varanda. Soquei várias vezes uma pilastra descascada até que sangue saísse de meus punhos, até que a dor fosse tão grande quanto a dor que eu provocara nela. Fiquei sentado ali, no chão, olhando as galinhas ciscando no terreiro, as vacas ao longe paradas, ruminando. Meu futuro era incerto. Cadeia, morte talvez, era uma vida sem volta. Só uma coisa eu tinha que fazer, defendê-la a todo custo. Preservar sua vida, nada mais importava.

            Escurecia quando voltei ao interior da casa. Dirigi-me ao quarto, pronto a enfrentar o destino que me fora reservado. Não ouvia nada, o silêncio era quase completo, apenas o cricrilar dos grilos. A casa estava cheia deles. Antes o barulho me enfurecia, mas naquelas circunstâncias, era como se fossem nada para mim.
            No quarto, Isabela estava deitada, não chorava. Percebi que ela dera um nó na blusa, escondendo o seio que ficara à mostra mais cedo. Sentei-me ao lado dela e num impulso, acariciei seus cabelos. Ela tomou um susto, mas quando percebeu que era eu, relaxou e aceitou meu carinho.
            “Está com raiva de mim?”, perguntei, após inflar o peito de coragem.
            “Como se pode ter raiva de alguém, depois que esse alguém confessou seu amor…”
            Ela virou-se para mim, com aqueles olhos que por muitas vezes apenas vi à distância.
            “Tem coisas na vida que não se tem explicação”, ela continuou. “Sabia que sempre percebi algo diferente em você?”
            “Eu achava que você nem sabia que eu existia, sempre tentei ficar distante.”
            “Digamos que você não foi tão eficiente nesta questão”, disse, pela primeira dando um sorriso. Acariciei sua face, sentindo a suavidade de sua pele.
            “Você é tão linda…”, eu lhe disse, não tirando dela os meus olhos. Eu nem me atrevia a piscar. De repente ela me puxou no braço, aproximando-me dela. Não ofereci resistência e me dirigi ao seu encontro. Beijei seu rosto, deixando meus lábios sentirem o calor de sua pele. Aos poucos nossos lábios se encontraram, lentamente caminhei em direção aos seus. O beijo foi surpreendente, não como tantas vezes eu fantasiara, mas muito melhor do que em todos os meus sonhos. Era real, estava acontecendo. Abracei-a, envolvendo meus braços em seu corpo. Senti o seu coração bater acelerado e a respiração ofegante. Após o beijo, afastamo-nos um pouco e voltamos a nos encarar. Os olhos dela brilhavam.
            “Eu nunca pensei”, falou ela. Baixou os olhos, lágrimas tornaram a escorrer. “Queria que isso não tivesse acontecido aqui…”
            Nunca teria acontecido se não fosse aqui, pensei, sentindo um aperto no peito.
            “Tenho que tirar você daqui!”
            “Não há como… não vou cortar a minha perna para arrancar essa corrente”, disse, resoluta, após ver que a penumbra ia-se transformando em escuridão. “Já não posso esperar nenhum milagre. Agora é com meus pais.”
            O silêncio voltou a se abater sobre nós dois, como se a realidade entrasse sem bater na porta arrancando de nós dois aquela felicidade irreal. Fiquei ao seu lado o resto da noite.
            Ainda de madrugada, pouco antes da alvorada, voltei para a sala. Seria um risco imenso caso os dois chegassem e me vissem deitado na cama com ela. Quantos dias mais seriam necessários para que o pesadelo findasse.

            Três dias se passaram. Três dias de uma pseudo-felicidade. Três dias em que as horas passaram como o voo de um falcão-peregrino em busca de sua presa. Mal o sol iluminava trazendo os prenúncios de um novo dia, ele já se punha crepuscular, trazendo o afago da noite. Conversávamos, conhecíamo-nos cada vez mais. Afinidades eram descobertas, talvez nada mais emblemático para mim que descobrir o desprezo dela sobre divergências sociais. “Somos feitos da mesma matéria!”. Beijávamo-nos como um casal de apaixonados. Não nego o meu desejo de amar carnalmente aquela mulher, mas a realidade era por deveras dura e não havia espaço para aqueles pensamentos. Mas que o desejo era forte, isso era.

            Era tarde de um sábado quando os dois voltaram, após longa ausência e conversas apenas pelo celular. O choque de realidade era maior do que eu podia suportar. Em alguns momentos senti que a reclusão forçada nada mais era do que uma reclusão. Um retiro para a descoberta daquele amor reprimido por tantos anos. Os dois mal-encarados estavam de volta, mas desta vez voltaram de armas em punho. Cada um carregava um revólver. Jorge segurava um .38 de cinco tiros, com aparência de novo, ainda preservando detalhes cromados. Zóio empunhava também um revólver do mesmo calibre, porém mais antigo, como se tivesse muitos anos de estrada. Ambos estavam nervosos, um tanto eufóricos.
            “Acabou, rapaz!”, disse Jorge, pondo uma sacola de papel sobre a mesa, recheada de notas de 100 reais. “Duzentos mil!”
            Zóio ficou zanzando pela casa, indo da cozinha à varanda, parecia extremamente desconfortável. Ele suava bicas.
            “São quinze mil pra você, o resto é paga pelo seu irmão.”
            “Não quero!”, disse, enfático, procurando não alterar a voz.
            “Como é que é? Cê tá de caô com a gente?”, gritou. “Escutei bem ou cê disse que não queria o dinheiro?”
            “Não! Não quero fazer parte dessa merda toda!”
            “Perdeu o juízo, garoto?”, disse Zóio numa das passagens próximo de mim. “Quer morrer aqui, quer?”, e apontou a arma para a minha cabeça.
            “Eu só não quero nada disso. Que fique a paga pelo meu irmão.”
            “Se acha que isso livra você, está muito enganado, entendeu? Puta que o pariu, agora o cara tem consciência!”
            Zóio apareceu de volta onde estávamos. “Vou pegar a menina agora!” Jorge abaixou a cabeça soltando um ligeiro: “Fique a vontade!”, enquanto arremessava uma chave para ele. O sujeito então caminhou para dentro do quartinho, com um sorriso nojento no rosto.
            “Espera um pouco, Jorge! Que é que está acontecendo? O que ele vai fazer com ela?”, meu coração entrou em desespero já sabendo da resposta.
            “Ah! Moleque! Ele vai se divertir um pouco. Se você quiser, vai poder ir também, mas depois tá?”, e gargalhou na minha cara. Ouvi um grito assustador vindo do interior. Aquilo não podia estar acontecendo.
            “Por favor, Jorge, manda ele parar! Vocês já conseguiram o dinheiro, não precisa fazer nada disso.”
            “Carece ficar preocupado não, rapá! A menina já tá morta mesmo!”
            O meu sangue gelou. Quando ele se virou e se dirigiu à porta do quarto, peguei uma faca que estava sobre a mesa e corri até ele, enfiando em suas costas.
            “Filho da puta!”, ele ainda berrou, chamando atenção de Zóio que veio pra cima de mim, derrubando-me no chão. Mordi sua mão, quando este tentou me esganar. O sangue avolumou-se em minha boca, juntamente com um naco de carne. Os olhos dele eram pura fúria. Socou-me e vi estrelas por um momento. Um tiro ecoou e senti minha barriga doer, um calor úmido nas minhas costas. Virei-me e vi Jorge com a arma, pronto para dar outro tiro em mim. Era o fim, pensei, mas vi Isabela pegando a corrente que tanto tempo a mantivera presa, e que fora retirada para que o desgraçado abusasse dela. A corrente agora em volta do pescoço de Jorge, sufocando-o, mas por pouco tempo, o tempo em que ele se virou acertando uma cotovelada em sua barriga. Ela caiu sem fôlego sobre a cama. Nesse meio tempo, Zóio correra para fora do quarto, em busca da sua arma. Dois estampidos secos foram ouvidos, seguido de vários gritos. Um terceiro tiro foi ouvido quando Jorge correu para ver o que tinha acontecido. Ele caiu de joelhos na porta do quarto, arqueando o corpo para trás, com um mancha negra na testa. Vultos adentraram e se posicionaram na porta. Várias vozes eram ouvidas. Tentei me levantar e outro tiro soou. Fechei os olhos. E então senti um corpo caindo sobre mim. Isabela tombou em meus braços. Rapidamente seu corpo parcialmente nu foi tomado de sangue. Aquilo não podia estar acontecendo.
            Em questão de minutos havia muita polícia no local. O tiro que fora dado nas costas estava tirando-me as forças rapidamente. Jornalistas chegavam e se amontoavam do lado de fora. Flashes iluminavam a noite daquele bairro de periferia, quase uma zona rural. Eu estava algemado sobre uma maca. Enfermeiros cuidavam de mim. Vi viaturas, ambulâncias. Percorri os olhos à procura de Isabela e a vi levada para outra ambulância. Tinha um respirador no rosto. Um policial se aproximou de mim.
            “Não sei o que aconteceu aqui, rapaz. Não sei o que fez com que aquela menina se atirasse na sua frente para salvar a sua vida. Mas ela salvou, isso salvou… Só que você vai pagar muito caro por tudo isso. Vai apodrecer na cadeia, seu desgraçado!”
            Queria ter falado algo, ter dito algo. Mas não consegui, não tive voz. Chorei mais uma vez, com a lembrança do corpo inerte da minha Bela sobre meus braços. E desmaiei.



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