sábado, 13 de novembro de 2010

O POETA (parte 4)


IV


            Batidas na porta do quarto de Vinícius, que passara outra noite em claro. A mãe abrira a porta e anunciara a entrada de Clara. Sua amada entrou, como sempre, linda, e não podia ser de outra forma.
            — Olá, meu amor! — disse-lhe ela, dando um beijo rápido na sua boca.
            — Bom te ver!
            — Como você consegue viver nessa bagunça, Vinícius? Espera um pouco que vou ajudar a arrumar. Tantos papéis espalhados.
            — Não precisa, fique comigo.
            Ela olhou-o com ternura. Viu os olhos fundos dele brilharem e sabia, no íntimo, que ele sabia que a culpa do seu estado lamentável era dela. Sentou-se ao seu lado, na cama.
            — Eu não consigo mais escrever… — desabafou, desabando em lágrimas no colo da namorada. Ela por sua vez, acariciava os cabelos dele. — Eu tento, e nada, nada, nada. É tão insuportável.
            — Eu não consigo entender? Por que tanta importância?
            — Não blasfeme, Clara! Poesia é a minha vida. Escrevo desde os doze anos de idade. Tenho mais de mil guardadas…
            — Meu querido…
            — Eu não posso culpá-la. Ninguém tem noção de como vive um poeta sem a poesia a alimentá-lo. É como colocar um saco plástico na cabeça, morre-se sufocado. Eu vou morrer, Clara.
            Ela o abraçou e sentiu seu corpo frio, quase sem vida.
            — Está a assustar-me, rapaz! Que importância tenho eu na sua vida? Sofre agora pela poesia, não come mais pela poesia… Ora, sinceramente.
            Ele caiu de joelhos e beijou seus pés.
            — Você é o motivo de eu não estar já a sete palmos abaixo da terra…
            — Não diga isso, morreria se fosse perdê-lo. Quero-o tão vivo…
            Abraçaram-se mais uma vez, fortemente unidos. Ela tinha muito medo de perdê-lo.
            Clara era uma mulher de vinte e um anos, linda, incrivelmente linda, que se apaixonara perdidamente pelo professor particular, há quase cinco anos. Ela tinha a doçura nos lábios e os raios do sol nos cabelos. E fizeram-no cair de joelhos diante dela. Amara-a desde as primeiras letras das aulas de reforço de literatura. Ele sempre sonhara ser grande, conhecido através das suas autênticas e inovadoras poesias de amor.
            Escrevia freneticamente, sempre impulsionado por alguma desilusão amorosa. Os amigos o classificavam de poeta do sofrimento. E mostrou-se verdadeira a afirmação. Recheara de poemas relatando aventuras sem sucesso ou paixões platônicas. Talvez por isso Clara tenha-se tornado a primeira namorada. A única que vencera as letras. Pois sim, Vinícius, tomando consciência do seu talento, após os dezesseis anos, e muito mais consciente de que os seus grandes feitos literários eram ocasionados por lágrimas vertidas pelas coleguinhas e amigas, decidiu não se enamorar de nenhuma. Dedicara-se a amar platonicamente, e sofrer como um condenado, debulhando-se em lágrimas e palavras. Os elogios não tardavam. Orgulho dos pais, professores, amigos; vencedor de quase todos os concursos que participara no colégio, admirado pelos professores do seu curso de Letras. Tinha tudo para sagrar-se um Imortal, assim se permitia sonhar. Não tivesse ele se apaixonado pela garota de dezesseis anos que lhe pedira umas aulas de literatura. A força do amor fora tão desproporcional que o fizera escrever quase cinquenta poemas em poucas semanas. Clara era romântica e apaixonara-se imediatamente. Astuta, descobriu logo o poeta e fez exigências por poesias belas que ele fazias aos caminhões. Enfim, escrevera sobre a felicidade, e por isso achava que tinha descoberto o outro lado. Não precisaria mais sofrer para escrever com qualidade. Ganhou outro tanto de concursos municipais e estaduais, bem como a promessa da publicação de um livro. Eles começaram a namorar. Clara, além de muito inteligente, mostrou-se companheira para todas as horas, uma amiga como poucas. Fora, definitivamente, a sorte grande que Vinícius tirara. Aos poucos foi deixando a poesia de lado e dedicava-se exclusivamente aos estudos e à sua amada Clara. Durante anos não escreveu um único verso, e não se importou com isso. Contudo, meses atrás, decidiu escrever um poema para comemorar um aniversário de namoro, e nada. Foi o início do tormento dele.
            Estava em período de férias e Clara sempre passava o dia com o namorado, tentava animá-lo. As conversas eram sempre as mesmas, as angústias, tudo se repetia tediosamente. A cada dia, cada semana, Clara via-se perdendo a batalha, os pais de Vinícius também. O filho se ia esvaindo, amofinando, definhando no seu próprio sofrimento.
            — Não entendo, Vinícius — falou Clara, deitada na cama. O quarto estava todo arrumado, ela o ajeitara, com a ajuda da mãe do namorado há alguns dias, enquanto ele estava fora. — Você se queixa de não conseguir escrever. Não escreve porque é um poeta da dor. Estou certa? — ele balançou a cabeça afirmativamente. — Pois bem, quer dor maior do que esta que lhe consome há meses?
            Ele não tinha pensado por aquele ângulo. Definitivamente, a dor que sentia era muito grande, demasiada esmagadora. Já, inclusive, devia tê-lo matado. E por que, diabos, não conseguia produzia uma única linha?
            — Não posso afirmar nada, meu amor. Mistérios da vida. Eu só sei que é torturante demais. Já não tenho controle dos meus atos…
            — Meu querido, meu amor, me assusta assim. Eu o amo tanto…
            Ela viu-se diante de um ser que não reconhecia mais. Tentara de um tudo para animá-lo e tudo se mostrara ineficaz. Ficara, por um certo instante, a olhá-lo ternamente, e uma idéia soprou-lhe na mente.
            — Quero que sorria — pediu.
            — Há, se o sorriso me quisesse sair…
            — Faça uma força.
            — Por você, eu faria tudo, não é a toa que ainda vivo.
            — Ridículo! — e avançou sobre ele, beijando-o ardentemente. Sussurrou algo em seus ouvidos.
            — O que disse?
            — Faça amor comigo.
            — Mas nunca o quis, que a fez mudar?
            — Eu não me julgava preparada… Agora estou, e lhe quero demais.
            Os dois beijaram-se longamente. Ele a contemplou demoradamente, tantas vezes quis e em todas recusara. Vá entender cabeça de mulher. Talvez seria uma tentativa de fazê-lo feliz, tomara que não. Beijou seu pescoço, enquanto soltava o sutiã. Os peitos pequenos e rijos, com as auréolas rosadas, foram acariciados e beijados com uma doçura própria dos poetas. Sim, estava falando poesia baixinho, só para si. Ficaram nus e fizeram amor o dia inteiro, repetidas vezes. Ela dormiu com ele, não apenas aquela noite, mas todas as que se seguiram. Vinícius voltara a sorrir. Clara sorria todo o tempo. Pensaram em casar-se e marcaram até a data. Dali a um mês. E comunicaram aos pais de ambos, para desgosto dos mesmos. Nada podiam fazer. Durante semanas viviam os dois amantes nus, amando-se desesperadamente.
            — Estou tão feliz! — disse ela, certa ocasião.
            — E eu não sabia o que era felicidade.
            — Esqueceu a poesia?
            — Não, mas você é mais importante.
            Eles sorriram. Mas Vinícius mentiu. Ele não esqueceu, pelo contrário, refletiu um tanto de vezes. E chegado o dia da véspera do casório, procurou Clara.
            Ela abriu a porta e chocou-se ao vê-lo.
            — Meu querido, pensei que só nos veríamos amanhã!
            — Precisamos conversar.
            — O que houve, Vinícius? Sua cara está péssima!
            — Por favor!
            — Está bem. Entre.
            Dirigiram-se ao quarto dela. Ele deparou-se com o vestido de noiva sobre a cama.
            — É lindo!…
            — Mais lindo estará amanhã, em mim.
            Tentou beijá-lo mas Vinícius recusou.
            — Que houve? Está diferente, não dormiu?
            — Não. Eu descobri, Clara, descobri que não posso viver sem poesia.
            Ela deu de ombros.
            — Eu lhe explico… — sentou-se na cadeira, ela na cama. — Não adianta eu tentar mudar, esquecer. É uma faca de dois gumes, não sei o que me fere mais.
            — Continuo sem entender.
            — Calma. Tenho duas pontas da mesma faca no meu coração, e tenho de fazer uma escolha, uma escolha muito difícil: saber qual das pontas poderá me matar… Uma das pontas da faca é a poesia… a outra é você.
            — Eu?!
            — Desde que eu a conheci, nunca mais fui infeliz. Eu, que sempre fugi do amor e da felicidade, por causa da poesia. Você conseguiu me mostra o quão lindo é o amor. E eu a amo tanto quanto a minha vida. Mas a partir daí, acabaram-se as idéias, as dores, acabou-se tudo que tinha importância para mim. O resultado é um homem seco, vazio, completamente oco por dentro. Sou eu!… É por isso que eu tenho de escolher…
            — Entre mim e a poesia?
            — Exatamente! Se ficar com você, não escrevo mais. Adeus a tudo o que me motivou, e morro. Se deixá-la, volto a ser o mesmo Vinícius de sempre. O poeta da dor. Aquele que melhor retrata o sofrimento…
            — Como pôde…
            — Eu sinto muito.
            — Vá para o inferno! — bradou aquela linda menina, vertendo lágrimas de agonia.
            — Me perdoe! Seria pior se eu tentasse me enganar. Eu a amo…
            — Pelo amor de Deus! não fale em amor. Você não sabe o que é o amor, Vinícius. Vá, volte para a sua poesia. Morra de tanto escrever!
            — Clara!…
            — Não torne nunca mais a dirigir-me a palavra, monstro! Desapareça! Agora tem motivos de sobra para escrever. Desgraçou uma pessoa, matou-me! Vá, desapareça!
            Vinícius, sem lágrimas nos olhos, levantou-se da cadeira, deixando-a caída sobre o vestido de noiva. Deixou a casa sob o olhar furioso da ex-futura sogra, que nunca teve gosto por ele mesmo. Caminhou de volta para casa, que ficava a alguns quarteirões.
            Chegou, olhou o pai deitado no sofá, lendo o jornal.
            — Está bem, filho?
            — Sim, meu pai. Agora estou.
            O pai o acompanhou com os olhos até que ele desaparecesse no corredor. Virgínia apareceu na sala.
            — Vinícius chegou?
            — Sim, está muito abatido. Aconteceu algo.
            — Deixa ele. Amanhã ele casa e fica tudo bem. Deve estar refletindo sobre o futuro.
            — O futuro é duvidoso — sorriu Antenor, lembrando-se de uma música. — Quando ele casar, tudo melhora, pelo menos por enquanto.
            — Está na hora do seu remédio. Vou buscá-lo.

2 comentários:

Márcia UFPE CAA disse...

Puxa! Estou ansiosa pala última parte. A história é linda.

Danila disse...

Que agonia para ver o fim da história de Vinícius!!!!!!!
Muito Belo o conto!!!!!

Danila