quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Conto: ESTOCOLMO (parte final)

*          *          *


            A conversa dos enfermeiros me enervou. Estocolmo, eu pensei. Deviam estar falando de mim. Evidente que era o caso mais comentado dos últimos dias. Estava em todos os jornais locais, até mesmo nos nacionais. Eles deviam se referir à Síndrome de Estocolmo, quando a vítima cria afeição pelo seu agressor. Não sei se era o caso, se a paixão repentina de Isabela por mim seria um mecanismo de defesa para a sua sobrevivência. Pelo menos seria o alegado pela promotoria na ocasião de meu julgamento. Que importava agora? Ela estava morta. Ela não poderia dizer nada em meu favor. Terei o destino que tanto temi, mas que tanto mereço.
            Todos aqueles dias no hospital, algemado à cama, sem notícias. Sem visitas, apenas policiais apareciam por lá, e um detetive que me fora ver duas vezes. Parecia ansioso pela minha melhora, queria me enfiar numa cela vagabunda. Na minha cabeça, além da terrível lembrança do que acontecera à Isabela, também havia a incerteza sobre as vidas da minha mãe e do meu irmão. Estariam realmente bem? Por quanto tempo eu ficaria isolado? Por quanto tempo me manteriam à margem das coisas, sem a possibilidade de defesa, sem ouvir a minha explicação? Aceito todo tipo de punição, pois a pior dor já me fora causada. Fecho os olhos mais uma vez e a imagem dela me vem outra vez à mente. Mas não a imagem daquela semana em que ela ficara confinada, encarcerada, mas todas as outras, de tantos anos. A imagem da garota por quem me apaixonei perdidamente.

            Após uma semana, tive notícias concretas sobre minha família. Estavam bem. Quando minha mãe me viu no hospital, disse-me que estava tentando conseguir um advogado, mas não tinham dinheiro, que teriam de recorrer à defensoria pública Mas ela estava esperançosa. Eu pedi perdão por todo aquele desgosto, por ter falhado como filho, como ser humano.
            “Perdão por essa vergonha…”, eu disse antes de ela deixar o quarto.
            “Você não tem do que se envergonhar, meu filho”, falou ela, a voz cansada. Sua aparência estava mudada. Olheiras fundas, cabelos assanhados. Envelhecera alguns anos. “Tudo que você fez foi por sua família, meu querido.” E ela me acariciou os cabelos com a ponta dos dedos finos. Ela era meu tudo, e apesar dos acontecimentos, estava ali firme, pronta para enfrentar mais aquele obstáculo em sua vida. Graças a Deus ela estava bem, e eu sabia que ela não fraquejaria, então eu não poderia esmorecer, e tinha de ser resoluto e enfrentar com dignidade os percalços que a vida apenas estava começando a impor. “Até mais, meu querido”. Ela caminhou chorosa até a porta. Queria ter falado mais com ela, mas a voz estava embargada. Foi quando, de repente, algo não fez sentido para mim. Eu não tive ainda a oportunidade de falar nada, para ninguém. Como ela soube daquilo? Não fazia sentido. Gritei. “Mãe!”
            Ela parou, já na porta. Seus olhos cansados se voltaram para mim. De repente, uma onda de calor tomou conta do meu corpo. Eu disse: “Eu te amo, mãe!” Ela sorriu e saiu.
           
            À tarde, naquele mesmo dia, entre um cochilo e outro, com as dores mais controladas, eu pensei ter morrido. De repente estava no paraíso. Para se estar lá é preciso morrer, conclusão óbvia. Na verdade, eu sonhei. A televisão estava desligada, há alguns dias não havia mais permissão para isso, desde que eu despertara totalmente e ficara isolado naquela enfermaria. Um policial entrou dizendo que eu tinha outra visita. Foram apenas alguns segundos, meu coração pulava dentro de meu peito. O suor exalava toda a adrenalina de meu corpo, toda a tensão. Meus olhos continuavam vidrados na porta, torcendo para que eles não se decepcionassem. Mas não iriam, não tinham como, o meu coração já se certificara disto.
            Ela entrou lentamente. Estava linda, linda como sempre deveria estar. Nada lembrava aquela garota assustada de uma semana atrás. Tinha o braço esquerdo apoiado numa tipoia e exibia um grande curativo no ombro. Ela veio até mim.
            “Você está viva?”, foi a única coisa que consegui dizer naquele momento.
            “Graças a você”, disse ela, sorrindo. “Você salvou minha vida!”
            “Não, minha Bela, você foi que salvou a minha.”
            Ela tocou em minha mão esquerda, apertou-a.
            “Eu já prestei o meu depoimento, disse que você fez tudo por mim. Mas disseram que eu tenho que passar por avaliação psiquiátrica… que eu posso ter desenvolvido a Síndrome de Estocolmo”, ela disse, sorrindo. Como era bom vê-la sorrir.
            “Eu posso imaginar. Mas não tem problema… Você está viva! Nada mais importa!”
            Meu contentamento era notório. Eu quase não parava de sorrir. Queria festejar. Ela não largou minha mão durante o resto do encontro.
            “Sabe o que é engraçado nisto tudo?”, perguntei, observando seu olhar curioso. “Agora sou eu que estou acorrentado…”
            Ela concordou com um sim tímido, deixando escapar mais um sorriso, e se aproximou de mim dando-me um leve beijo nos lábios.
            Eu me senti em paz. Seria aquele um final feliz? Quem sabe. O bom da vida é justamente não sermos conhecedores de nossos destinos, e sim fazermos o nosso destino. Só que agora, no meu caso, eu iria lutar com todas as minhas forças pelo meu. E naquele momento específico, eu estava em paz, eu estava feliz.



2 comentários:

Dimas Paz disse...

Nossa! Foi muito bom mesmo! Eu adorei ate me emocionei! O desfecho foi realmente estupendo e o titulo ESTOCOLMO foi divino.

Ricardo Lima Guimarães disse...

Obrigado, Dimas!!!